MEUS HERÓIS CIVILIZADORES
Luis Antonio Simas
QUINTA-FEIRA, 18 DE AGOSTO DE 2011
Não existe redenção para as grandes
tragédias, mas a vingança sublime e a única forma de
transcendência dos homens ao desmazelo da vida é
transformar a má fortuna e a dor em beleza, civilização e
arte. Os meus heróis civilizadores não frequentaram
bibliotecas, não discutiram a alta filosofia nas academias e
universidades, não escreveram tratados iluministas, não
pintaram os quadros do Renascimento, não escreveram romances,
não compuseram sinfonias, não conduziram exércitos em grandes
guerras, não redigiram leis, não fundaram empresas, não
elaboraram tratados e constituições e não planejaram
monumentos, edifícios e pontes.
Os homens que me civilizaram chegaram às
praias do meu país nos porões infectos dos tumbeiros e
foram vendidos e marcados feito gado no mercado.
Eu fui civilizado pelo rufar dos
tambores misteriosos, pelo toque de São Bento Grande no
berimbau de cabaça, pela dança desafiadora do Obá dos Obás,
pelo bailado da dona do afefé - sagrado vento - e
pelo xaxará do senhor da varíola, a quem reverencio e peço
a calma para não estranhar o mundo - Atotô!
Aprendi a olhar com admiração os homens
ao conhecer os dribles de Mané, a ginga de Pastinha, a
sabedoria de Menininha, a força de Candeia, os versos de Silas,
o miudinho de Argemiro, as esculturas de Mestre Didi, as toalhas
rendadas de Tia Prisciliana, o cachimbo de Dona Eulália, o
canto de Anescar, o tempero da Iyá Bassê, o lamento dos
vissungos, o machado do jongo, as folhas de Ossain e os cantos de
evocação de Oxupá, dindinha lua.
Quem me criou não tinha educação formal
e não me deu o Dom Quixote, o Crime e Castigo, o Dom
Casmurro, o Grande Sertão e outros tantos grandes livros que,
como esses, eu li um dia e passei a amar. Quem me
criou, porém, me contou das artimanhas de Exu, da flecha
certeira de Oxóssi, dos amores de Ogum, das mulheres de Xangô,
do tronco forte de Tempo e do pano branco de Lemba -
e eu passei a gostar de ouvir e inventar histórias, no
alargamento da vida.
Quem me criou não me levou aos teatros,
não me apresentou a grandes óperas e não me presenteou com
discos de sublimes sinfonias - que dessas coisas quem me criou
não sabia. Mas quem me conduziu cantou, para confortar as
minhas noites, sambas, toadas, jongos, afoxés, cirandas,
maracatus, alujás, calangos, xibas e xotes - e eu fui
apaziguando a alma com os sons do meu povo.
E é por isso, por essas áfricas que me
fizeram como sou, que gosto da rua, do mercado, dos amigos,
da gente miúda feito eu, do porre, da bola, do beijo, da troça,
da raça, do sol, da cachaça, da carne, da alegria, da
subversão, da insubmissão, da guerrilha, do vento, da aldeia,
do mistério, da mistura, do dendê, das pernas tortas, do
português torto, da língua do Congo e do pranto do banzo.
Mojubá, agô, que essas ideias todas são
mais fortes nesses dias de agosto em que aniversariou
Candeia e relembramos o encantamento do mulato Caymmi. E eu
me pego todo dia a orar a Zâmbi por um Brasil
mais tolerante com o seu povo. Há que se lamentar e
reverenciar (todos os dias) o martírio dos tumbeiros, fazer
do tronco do castigo o totem da humanidade e louvar a todos os
quilombolas, de ontem e de hoje, que me ensinaram a amar a
terra e celebrar a vitória da vida sobre a morte - lição maior
de Licutam, Luísa Mahin, Zomadônu e Zacimba Gaba. O Brasil
haverá de saber quem eles são.
É só assim que a gente afaga o tempo,
serpenteia a dor e apascenta, entre um tombo e outro, o olhar
sobre a belezura do que pode ser o mundo.
Abraços
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