Quem sou eu

Minha foto
Jornalista, por conta de cassação como oficial de Marinha no golpe de 64, sou cria de Vila Isabel, onde vivi até os 23 anos de idade. A vida política partidária começa simultaneamente com a vida jornalística, em 1965. A jornalística, explicitamente. A política, na clandestinidade do PCB. Ex-deputado estadual, me filio ao PT, por onde alcanço mais dois mandatos, já como federal. Com a guinada ideológica imposta ao Partido pelo pragmatismo escolhido como caminho pelo governo Lula, saio e me incorporo aos que fundaram o Partido Socialismo e Liberdade, onde milito atualmente. Três filh@s - Thalia, Tainah e Leonardo - vivo com minha companheira Rosane desde 1988.

terça-feira, 9 de abril de 2013

PARA O PSOL CONTINUAR NECESSÁRIO

-->
Contribuição ao IV Congresso do PSOL


Este é um documento aberto a adendos, que pode e deve ser aperfeiçoado por quem se identificar com suas linhas gerais. Ele busca contribuir para um elevado debate político que qualifique, desde as instâncias de base, o processo do IV Congresso do PSOL. O primeiro passo, redigi-lo, foi dado coletivamente, sem sectarismos e com o sincero intuito de ajudar nosso partido a se consolidar como força política de esquerda. O segundo depende de seu interesse e leitura - com esse mesmo espírito e propósito.

1. A chama da utopia

Toda análise tem uma motivação subjetiva. As que se colocam  como reflexão de militantes e simpatizantes de um partido político digno do nome, como o PSOL busca ser, devem se inspirar em dois elementos básicos: a) entender o que é tópico sem perder a dimensão da utopia, do vir a ser, de uma sociedade diferente, por igualitária, justa e radicalmente democrática – socialista, enfim – que aspiramos, negada cotidianamente pela distopia dominante; b) diferenciar, na ação política, os objetivos estratégicos dos movimentos táticos que ela exige, dialogando com a realidade e com ela fazendo as mediações necessárias, dialeticamente, sempre lembrando que os meios devem conter ao menos sinais dos fins, sob pena de desvirtuamento. E que esses fins, por mais grandiosos que sejam, não se viabilizam por mera insistência proclamatória ou baluartista.

 Nosso tempo pessoal não tem o ritmo do tempo histórico que nos ultrapassa: estamos, de certa maneira, ‘condenados’ a lutar por um ‘vir a ser’ que não é, e possivelmente não será em nossa existência - o mundo justo que não veremos. Mas “plantar árvores sob cuja sombra não descansaremos” (Rubem Alves) não deve nos desanimar. São os esforços de mulheres e homens lutadores que fazem a roda da História girar. Ela não é acelerada por uma natural e jovial impaciência, nem pela às vezes saudável intransigência, que, ainda que emuladoras em determinadas situações, não servem como argumentos teóricos.

Hoje mais que ontem, entretanto, a utopia é um imperativo categórico, pois “alimenta de horizontes” não apenas os sonhos, mas as preocupações concretas com a fome e a miséria de milhões, jogados no desrespeito à sua dignidade, e o esgotamento dos ecossistemas, que ameaçam a continuidade da vida na Terra: acidificação dos oceanos, redução da biodiversidade, contaminação dos lençóis freáticos, aquecimento global e outros fenômenos nada naturais.

Do mesmo modo, a teoria, a reflexão crítica, é uma exigência de toda prática, inspirada pela utopia, que pretenda ter alguma incidência na realidade. Mesmo, ou talvez ainda mais, na situação adversa, de mera resistência, em que nos encontramos agora, na quadra da hegemonia capitalista mundial (malgrado suas crises).

É certo que não existe o apregoado ‘fim da História’, com o triunfo do liberalismo e de caminhos supostamente abertos para a concretização de uma sociedade de plena realização dos indivíduos, onde as classes sociais não contam mais. Mas temos que considerar que não estamos em um período de narrativas épicas, de insurreições populares que, em acelerados ‘10 dias’, abalam o mundo e nossas emoções com tomadas de palácios da aristocracia ou da burguesia.

O século XXI, ao entrar na segunda década, traz novos cenários, mais complexos e controlados pelas forças conservadoras dominantes, mas não menos dinâmicos. Em carta a Contardo Calligaris, crítica a um artigo seu publicado na Folha de São Paulo de 14/2/2013 (“Saudade de ideias perigosas”), o advogado João Telésforo faz uma observação muito pertinente: “a hegemonia de uma grande narrativa, a do capitalismo e de seu aparato institucional, é colossal. Discute-se apenas sobre quanto e como regulá-lo, bem como outras questões importantes, mas não a radical transformação de suas estruturas. O discurso que celebra o fim dos grandes ideais, das ideias abrangentes de compreensão da sociedade e de sua transformação, acaba por servir a que não sejam discutidas nem questionadas as estruturas, suas forças dominantes e grandes mecanismos”. João Telésforo lembra que este discurso dominante estimula as pessoas “a tomarem sua ignorância como um conhecimento perfeito” e... despolitizado: “esse conhecimento sobre o caráter fragmentário do mundo, da sociedade e da política – o que é uma verdade, porém relativa e parcial – tem tornado muita gente insensível à necessidade de fazer articulações, pensar o todo e articular as transformações em projetos comuns”.

 Mas o bloqueio das elites, com seu arsenal de ‘argumentos’ sobre a modernidade e o ‘anacronismo da luta de classes’, além do ‘gás paralisante’ do individualismo e da existência exclusivamente privada (esta é a ‘grande narrativa’ da distopia: ‘não há alternativas’), é fustigado por movimentos fervilhantes, em muitos países do mundo. E também no nosso, tanto nos grandes centros quanto no Brasil profundo.

Isso não nos dispensa de ir além de enunciados genéricos ou das consignas apropriadas para panfletos e microblogs. É tempo de ‘trocar de roupa andando’: desenvolver a militância política e, ao mesmo tempo, estudar. Fazer, coletivamente, uma análise mais refinada da realidade do cenário mundial e nacional, na perspectiva da ‘classe’ – outro termo carregado de significâncias comoventes mas também simplificador, quando mascara a diversidade dos segmentos do mundo do Trabalho e seus interesses multifacetados, quase sempre submetidos à ideologia triunfante do Capital.

Reconheçamos que o PSOL ainda não consolidou uma formulação teórica e uma ação política coesa que aborde em profundidade os grandes temas nacionais. No importante apoio a lutas pontuais e corporativas dos ‘de baixo’, nossa atuação pública pauta-se mais como contraponto à vitoriosa orientação social-liberal e neodesenvolvimentista do lulopetismo. Não temos conseguido nos firmar plenamente como polo aglutinador de uma nova vertente de esquerda. A missão histórica do Partido Socialismo e Liberdade é bem mais ampla do que ser a ‘costela crítica’ do PT.

2. A crise é também do socialismo

Um desafio se coloca para nós: a ressignificação do socialismo. Quase todos os partidos políticos brasileiros estão adaptados ao sistema e são defensores do Capital como único dínamo das relações econômicas – ainda que pelo menos oito dos 31 constituídos traga o socialismo em seu nome ou programa.

 O socialismo que somos chamados a reinventar não nos coloca como ‘passadistas’ ou retrógrados, opositores do desenvolvimento. Sabemos que não há socialismo sem desenvolvimento das forças produtivas, da tecnologia, das forças do progresso. Mas é urgente qualificar o tipo de desenvolvimento – não apenas econômico, mas também de justiça social, democracia política, equilíbrio ambiental e oportunidade cultural, centrado no respeito aos ritmos e limites da natureza e comprometido com a superação das desigualdades sociais – que defendemos. Entender as complexas relações entre desenvolvimento capitalista das forças produtivas, consciência de classe e projeto socialista é imperativo constitutivo do próprio PSOL, que não temos conseguido elaborar. Sem isso não compreenderemos o Brasil do passado escravocrata e dos monopólios atuais, nem conseguiremos contribuir para sua transformação.

Não há mais paradigmas de sociedades socialistas hoje. É preciso aposentar os dogmas e colocar os mitos dos grandes revolucionários e das organizações políticas do século XX no seu simples (mas não pouco importante) lugar de memória emuladora na nossa atuação contemporânea: bons companheiros de viagens que não servem como ‘guias geniais’, ‘grandes timoneiros’, ‘faróis luminosos do porvir’.  É verdade que não estamos começando do zero. A história nos traz ensinamentos e parâmetros que não podem ser descartados, sob o risco de repetirmos erros do passado. Lênin, que segue útil (e datado, como todo ser humano), insistia em criticar o que chamava de “comunismo puro, isto é, abstrato, incapaz de ações políticas práticas, de massas, que devia levar em consideração as divergências entre os dominantes”. Denunciava como “charlatão quem pretendesse inventar para os operários uma fórmula que, antecipadamente, apresentasse soluções adequadas para todas as circunstâncias da vida” (“Esquerdismo, doença infantil do comunismo” – 1920).

Não há modelos. A China, que compra matérias primas do Brasil a preços 15 vezes menores que as bugigangas manufaturadas que nos vende, é potência econômica que fascina os gerentes do Banco Mundial com seu capitalismo de Estado, sua centralização, seu monolitismo político e sua exploração de mais valia de trabalhadores. Não sem reação: aquela ‘República Popular’ enfrentou mais de mil greves operárias nos últimos 2 anos.

(Uma observação lateral, mas de central importância: é sabido que a China compete com os EUA para ocupar o lugar mais alto no pódium da poluição. Entretanto, é notável que em 2012 a sua geração eólica tenha ultrapassado a nuclear e já esteja ocupando o terceiro lugar como matriz energética, atrás do carvão e da hidroeletricidade. O planejamento chinês objetiva avançar 50% no aproveitamento do vento nos próximos dois anos. O ano em que os EUA mais investiram em energia eólica foi também 2012. Já o Brasil, apesar do seu potencial, ainda engatinha nessa e em outras alternativas energéticas)

Não há mais modelos. Cuba, da heroica e cinquentenária revolução, implementa sua reestruturação econômica, com novas leis e regulamentos que estimulam os pequenos negócios privados e os lucros. A meta é de, em cinco anos, ter metade de sua economia na esfera privada e não estatal. O programa de descentralização possibilita aos governos provinciais e locais gastar seus orçamentos a partir da receita fiscal recolhida na base, reduzindo os custos do governo central, que cuidará quase que exclusivamente de educação, saúde e defesa. Todas essas reformas se dão sob a consigna de “aprofundar o socialismo, para alcançar uma sociedade próspera e sustentável, talvez menos igualitária porém mais justa”, como pregou Raul Castro, desafiando nossa lógica costumeira. Fidel, já no ano 2000, ainda à frente do governo, cunhou frase que  é sempre lembrada em Cuba: “Revolução é sentido do momento histórico, é mudar tudo o que deve ser mudado”.

Não há modelos mas há experiências novidadeiras e interessantes em nuestra América, notadamente na Bolívia, Venezuela e Equador. Ali se verificam avanços graças à combinação de mobilização popular com ocupação de espaços institucionais e reformas constitucionais plebiscitárias. O genericamente chamado ‘processo bolivariano’, muito virtuoso ao abrir novos horizontes para as esquerdas latino-americanas, não está imune a equívocos, retrocessos e personalismos. Rafael Correa, vitorioso com ampla margem no Equador em importante reeleição, foi questionado por forças políticas à esquerda, como as lideradas por seu ex-Ministro Alberto Acosta, respeitável intelectual militante. Acosta disputou com Correa a presidência e colocou pontos importantes: “Os princípios fundamentais da Revolução Cidadã eram participação popular, consulta aos povos indígenas, economia social e solidária, direitos da natureza. Não questionamos o aumento dos gastos sociais, e sim sua efetividade. Correa aumentou os gastos com a saúde, mas o saneamento básico não melhorou. Há mais investimentos em educação, mas não há educação de qualidade. Ele aprofundou o extrativismo, entregou concessões a megamineradoras. Intensificou a monocultura petrolífera. (...) A não diversificação produtiva é um grande fracasso. O petróleo acaba. Nosso grupo pensa que o socialismo é um processo democrático sem fim. Sem democracia não há socialismo

 Momento crítico, nebuloso, difícil, contra-hegemônico. Mas também promissor para as esquerdas, no Brasil e no mundo, apesar de tudo: algo se move. O pulso ainda pulsa, e é para que nos indaguemos sobre alguns ‘valores’ inquestionáveis de um século atrás, como ditadura do proletariado e partido único. A cabeça ainda pensa, e é para que discutamos, como Marx bem o fez, as mutações do capitalismo, inclusive o papel do mercado no mundo contemporâneo – que, ao invés de estar a serviço da circulação e justa distribuição dos bens produzidos, sujeita as pessoas com seu ‘messianismo’ e sua mão de ferro. Terry Eagleton, em “Marx estava certo” (Nova Fronteira, 2012, p. 23), destaca que “Trotski considerava o mercado necessário ao controle da adequação e da racionalidade do planejamento”. No contexto da sociedade rudimentar, de forte base agrária de sua época, o líder revolucionário lembrava que “a existência de contabilidade econômica é impensável sem relações de mercado”. Nosso crânio é arredondado para que as ideias possam circular. Enquanto não há massa crítica e organizada para a socialização dos grandes meios de produção, que conquistemos, ao menos, a socialização dos meios de governar. Esta, efetivada, já resultará em situações de confronto com os interesses do grande Capital e em redução da exploração econômica.

Como reiterava nosso saudoso e admirável companheiro Carlos Nelson Coutinho, vivemos tempos de ‘reformismo revolucionário’, de flexibilidade tática que não comprometa a firmeza estratégica, de luta por reformas concretas e horizontalização de direitos civis, compreensíveis para as maiorias marginalizadas. Reformas e direitos que, sendo realizadas e garantidos, questionam o próprio sistema, estruturalmente reacionário e regressista.

3. Das primaveras aos outonos

Caminhantes no deserto, saudamos os oásis que representaram a chamada ‘Primavera Árabe’. Mas esses processos, dinâmicos e contraditórios, têm produzido, em muitos casos, o retorno de governos autoritários e até de corte fundamentalista, que têm que enfrentar seguidos protestos populares. Os interesses do imperialismo também estão ali inseridos, sempre atentos ao que melhor assegura os ganhos do grande capital internacional. E reticentes em apoiar, aqui e ali, determinadas forças rebeldes,  com medo do seu potencial popular. Situações contraditórias em que regimes autoritários locais, de ditadores excêntricos, sofrem crescente oposição, também de segmentos apoiados por forças imperialistas que desejam retomar o controle pleno sobre regiões inteiras ricas em petróleo e com povo na miséria.

A própria nomenclatura ocidental, cunhando como ‘avanço civilizatório’ e ‘democracia’ o que atende às suas demandas econômicas, é fator de uma nova dominação. De qualquer maneira, a cena está aberta, inclusive para que as ‘primaveras’ das grandes manifestações populares, reprimidas ou domesticadas, caminhem para um outono de desencanto. Com diz Achcar, “o povo aprendeu a ‘querer’ sair às ruas”.

Os movimentos de “Ocupa”, que causaram surpresa e aumentaram nosso ânimo em 2011 e parte de 2012, perdem alguma força, talvez em função de sua própria característica de se definir como ‘levante dos contra’, do ‘anti’, sem perspectiva de clara direção política e projeto de poder. Mas nem por isso deixam de ser uma novidade interessante, um ‘sinal dos tempos’, uma reação ao comodismo consumista e ao egoísmo social induzido por poderosas máquinas de produção do imaginário coletivo nos parâmetros do hiperindividualismo e do ‘self made man’.

Olgária Matos, professora de filosofia da USP, em artigo intitulado ‘As rebeliões do efêmero’ (OESP, 25/12/2011), analisa: “as mobilizações contemporâneas têm seguidores que se reúnem em comunidades virtuais com sua solidariedade pós-moderna, sem valores comuns admirados e compartilhados por todos. As manifestações públicas e ocasionais contemporâneas se constituem no âmbito de um vazio ideológico e no quadro do anti-intelectualismo do mundo moderno. Com reivindicações particulares voltadas para si mesmas, esses movimentos não se vinculam uns aos outros, resultando em particularismo”.

Quase como contraponto ao que poderia parecer uma desvalorização desses movimentos espontâneos dos ‘99% contra os 1%’, Saskia Sassen, socióloga da Universidade de Colúmbia, traz outras considerações, igualmente relevantes (OESP, 25/12/2011): “ocupar é um processo que reelabora, mesmo temporariamente, a frequentemente antidemocrática lógica do poder incrustada no território. E com frequência também redefine o papel dos cidadãos, na maior parte debilitados e fatigados depois de décadas de injustiças e desigualdades crescentes. (...) A cidade surge como um espaço em que os impotentes podem fazer história; não é o único espaço, mas é um espaço crucial. Seja no Egito, nos Estados Unidos ou qualquer outro lugar, é importante que o objetivo dos ocupantes não seja o de arrebatar o poder. Inversamente, eles estiveram e estão engajados em trabalhar para a cidadania, expor as falhas e os erros da política e da sociedade. (...) O fato de as pessoas se tornarem presentes e visíveis umas para as outras pode alterar a natureza da sua impotência. Com base em certas condições, a impotência pode conter a possibilidade de criar o político, o cívico ou a história”.

Uma boa questão: em que medida a própria rejeição à democracia representativa e seus instrumentos está abrindo a possibilidade de se gestar novas formas de governar? Onde estão sendo buscados/construídos “quem nos represente”, já que quase todos “não nos representam”? 
    
A velha receita da superação da crise capitalista – via precarização de direitos, arrocho salarial e demissões – tem incendiado a Europa. As manifestações massivas têm caráter reativo, de sobrevivência. A privatização do sistema de saúde coloca em marcha, na defesa da saúde pública (que ‘não deve ser vendida, mas defendida’), a chamada ‘onda branca’ na Espanha. Essa mobilização é protesto que se soma à intensa atuação dos jovens do M-15. Eles amargam o maior desemprego da história ibérica nas últimas décadas, mas isso não se traduziu nas urnas: o PP conservador de Rajoy, já imerso em ondas de corrupção, fez maioria e indicou o Primeiro-Ministro. O povo grego continua sua admirável e incansável luta, mas as medidas recessivas e espoliativas preconizadas pelo Banco Central Europeu para a Zona do Euro têm sido implementadas, a ferro e fogo. Por outro lado, não podemos fechar os olhos à ascensão fascista, especialmente expressiva na Grécia.

O Movimento Cinco Estrelas, de Beppe Grillo, na Itália, expressão da antipolítica, desarrumou tudo. Disputando eleições sem aderir aos seus procedimentos tradicionais, recusando até debates televisivos, recebeu forte votação dos que, como nós, repudiam o sistema. Mas seu desdobramento, inclusive nos espaços parlamentares que conquistou, ainda é uma incógnita e já revela muitas contradições.

A crise é tão grande e generalizada que chegou ao Vaticano, com o primeiro Papa renunciante em quase seis séculos. Seu gesto, denunciando a ‘hipocrisia religiosa’ e a ‘debilidade moral’, revela a profunda degradação das estruturas do poder eclesiástico, que interage com os poderes seculares. Segundo o teólogo Leonardo Boff (Brasil de Fato, 20/2/2013), “a instituição mais velha do Ocidente incorporou privilégios, hábitos, costumes políticos palacianos e principescos que praticamente impediram ou distorceram todas as tentativas de reforma”. Os mares estão agitados até para a ‘barca de Pedro’, com seu novo timoneiro gerando, para muitos, expectativas de mudança.

 Na dialética da Modernidade, mais do que nunca, vivemos uma era de incertezas. Reconhecê-las, inclusive no âmbito das esquerdas, é tão importante quanto não ficar paralisado por elas.


4. A cara do Brasil

Numa perspectiva progressista, governos devem ser analisados não principalmente por comparação com os anteriores, mas pelo programa que os elegeram e sobretudo pelas expectativas que geraram. O decênio petista conseguiu rebaixá-las, consolidando o senso comum do ‘avanço possível’. Esvaziou a crítica, produzindo uma espécie de silêncio cooptado de grande parte da intelectualidade. Na prática, produziu resultados bem aquém da republicana ‘nova gramática do poder’ proclamada no fim de 2002 – também por muitos de nós hoje no PSOL.

A avaliação positiva do governo Dilma segue, de forma crescente, o que já se verificava com Lula. É inegável que há uma situação de ‘satisfação conformada’ com o governo do Brasil. Para além das personalidades dos chefes de governo, que também contam e, no caso, são radicalmente distintas e, de alguma maneira, complementares, há outros fatores que contribuem para esta ampla aceitação. Não é irrelevante a estatística que aponta uma diferença de 53 vezes nos ganhos dos 10% mais ricos em relação aos 10% mais pobres, em 2002, e que em 2010 cai para 39 vezes.

Ressalvas importantes: seguindo com esse critério da distribuição da renda pessoal do trabalho, o 1% mais rico, por outro lado, passou a viver ainda mais nababescamente, em ‘outro planeta’, em relação aos 99% da população. 50% do(a)s brasileiro(a)s continuam à margem dos direitos previdenciários. E metade da renda da impropriamente chamada ‘nova classe média’ (ou, mais inadequadamente ainda, ‘classe C’) é gasta com educação e saúde, o que revela que essas políticas universais e efetivamente distributivas não prosperaram como deviam.

A partir de uma situação internacional favorável, que já se desvanece, veio um certo crescimento econômico, consolidou-se a democracia política (apesar de seus crescentes limites) e o controle da inflação. Tudo lastreado no incremento das possibilidades dos gastos populares (aumento real do salário mínimo em quase 70%, crédito fácil), gerando ampliação do mercado interno da população de renda média e baixa, também alimentado pela rede de proteção social das políticas compensatórias que ampara 13 milhões de famílias (e que incide, timidamente, na diminuição da desigualdade). A recente redução dos juros e do custo da energia, e investimentos do governo federal, na linha do Estado indutor, somam-se a esse ‘ambiente favorável’.

Vale ressaltar o que a propaganda oficial esconde: estudo do economista Reinaldo Gonçalves (“Brasil negativado, Brasil invertebrado: legado de dois governos do PT”) mostra que no cotejamento com outros países ‘emergentes’ não estamos nos destacando, mantendo a 70º posição no IDH e nossa localização entre os cinco mais desiguais do mundo e entre os quatro mais desiguais da América Latina.  Nosso PIB tem crescimento médio de 4,7% na totalidade do período republicano, acima dos 4% da era Lula (FHC, média de 2,3%) e dos 1,8%, até aqui, de Dilma. “A taxa de crescimento da economia brasileira, na última década, foi menor do que a taxa média mundial, e a taxa de investimento, de 18,8%, ficou abaixo da taxa média mundial, de 23,9%”, afirma Gonçalves. E abaixo também da média da maioria dos países vizinhos, da América do Sul. A obsessiva comparação Lula/Dilma com FHC, obviamente favorável aos primeiros, encobre outros critérios de análise, mais abrangentes para uma perspectiva de compreensão do presente e de projeção do nosso futuro. Por eles, num hipotético ranking de 30 presidentes da República do Brasil quanto ao ‘desenvolvimento econômico’ em seu governo, Lula ocupa a 19ª posição, Dilma a 24ª e FHC a 27ª (Observação: o dado relativo ao governo Dilma deriva de estimativa e projeções do FMI para 2012, 2013 e 2014)

Social-liberalismo, modelo liberal periférico, neopopulismo, fordismo tardio, reformismo fraco, neodesenvolvimentismo, continuísmo sem continuidade: os especialistas multiplicam as caracterizações da década Lula/Dilma. O que nos parece claro é o revigoramento do Estado como controlador e viabilizador de recursos para investimento. Sobretudo pela política de fomento de grandes projetos pelo BNDES (esvaziando a autonomia de estados e municípios), o alinhamento do governo federal com as elites empresariais – empresas de Eike Batista, Friboi e empreiteiras são as maiores tomadoras de empréstimos públicos –  e o corporativismo das centrais sindicais cooptadas. Tudo resulta na diminuição dos espaços para oposições alternativas ao sistema (a oposição conservadora ficou sem discurso). Constituiu-se um novo Centrão político, adesista, fisiológico, confirmado por eleições bienais formais e banais, financiadas pelos grandes grupos privados.

A hegemonia do PT, com a abdicação de seu programa originário, produziu uma ampla coalizão governista, com notórios adversários agora felizes na base do governo. Os governistas Collor e Maluf, e a quase totalidade do grande empresariado nacional, são exemplos candentes deste transformismo petista. O fenômeno desse poder e dessa atratividade,  que deixa a oposição conservadora sem discurso, é explicado por André Singer em seu “Os sentidos do lulismo” (Companhia das Letras, 2012): “O lulismo é o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração de classe, o subproletrariado, por meio do programa cujos pontos principais foram delineados entre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo onde ela é mais excruciante tanto social quanto regionalmente, por meio da ativação do mercado interno, melhorando o padrão de consumo da metade mais pobre da sociedade, que se concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses do capital. (...) Destituída da possibilidade de agir por meios próprios, a massa se identifica com aquele que, desde o alto, aciona as alavancas do Estado para beneficiá-la” (p.15) (...) É mister, portanto, reconhecer que o conflito de classes está condicionado no Brasil pela existência de uma vasta fração de classe que luta por aceder ao mundo do trabalho formal em regime capitalista, com todos os defeitos que ele possui, tendo estado historicamente dele excluída” (p. 44).

Mas o ex-secretário de imprensa de Lula, ao valorizar esse ‘capitalismo popular’, com seu ‘reformismo lento e desmobilizador, mas reformismo’, tem honestidade intelectual suficiente para lembrar que “a luta ideológica parece recuar para um estágio anterior ao conflito capital/trabalho” e para fazer um alerta sobre os limites desse processo, que considera “um movimento vagaroso diante da abissal desigualdade brasileira, mantendo-se um largo estoque de iniquidade para as décadas seguintes, e se realiza sem mobilização e organização desde baixo, o que pode comprometê-lo numa situação de crise” (p. 46).

Estão aí os efeitos perversos da governabilidade conservadora: dispersão da esquerda, movimentos sociais debilitados, certa paralisia ou cooptação de importantes ferramentas de contraponto ao Sistema nos anos 80 e 90 (PT, CUT, UNE, ABGLT e outras). O pequeno aumento do salário médio real na última década, de 11%, e a redução da geração de empregos, são ‘contrabalançados’ pelas negociações trabalhistas exitosas do ano passado, quando 95% dos 704 acordos possibilitaram ganhos superiores à inflação, segundo o Dieese.  

Enquanto isso o andar de cima segue tendo seus próprios mecanismos de representação: a mídia grande privada, os financiamentos das megaempresas, a captura da produção do saber pelas corporações. Os partidos da ‘base aliada’ são quase ‘marcas de fantasia’, pois nas decisões mais importantes o que pesa são as bancadas de interesses: das empreiteiras, dos bancos, do agronegócio, do sectarismo conservador, da bola, da bala... Este retrocesso ideológico possibilitou que muitas privatizações fossem empreendidas sem resistência, que o fundamentalismo religioso tenha avançado e que a bancada ruralista tenha obtido grandes vitórias, como a do ‘imbroglio’ do Código Florestal.

À hegemonia do neoPT, PMDB e seus satélites, sempre ávidos por seus espaços no governo, com os costumeiros escândalos de corrupção daí decorrentes – que não abalam a estabilidade da dominação burguesa – corresponde uma espécie de ‘indigência intelectual’ crescente, com a despolitização induzida. A mediocridade teórica está presente até na caracterização de fenômenos sociais. A estrutura de classes no Brasil, por exemplo, crescentemente complexa desde o fim da escravidão, está hoje reduzida à tecnocrática definição alfabética do A, B, C, D e E. Carlos Guilherme Mota, historiador, chama a atenção para esta nova denominação, de largo curso (OESP, 25/12/2011): “nesse sistema ideológico dominante e desmobilizador, simplesmente fizeram desaparecer da cena nacional as classes sociais tradicionais (burguesia, proletariado, etc). Ou seja, foram desidratadas as classes fundamentais e seus projetos, eclipsados nesse sistema obtuso de classificação social adotado por marqueteiros, “analistas” e oportunistas da hora. Apagou-se da história do Brasil toda a complexidade e dinamismo das classes e estamentos sociais, substituídos agora pela classe B, a classe C, etc. Solidamente instalado o capitalismo selvagem, nessa manobra ideológica apaga-se até mesmo a possibilidade de crítica à ganância desassombrada de uma abstrata classe A. Nessa visão de mundo, a classe C ascendeu para a classe B, mercê da bolha que explica o consumismo dos últimos anos, que logo poderá explodir, aprofundando ainda mais a cultura da inadimplência, da violência e dos banditismos em seus variados matizes”.

Uma outra característica do último decênio, no campo político, foi a cristalização do conceito de ‘governabilidade’, com a busca a qualquer preço (inclusive de ‘mensalão’) de apoio parlamentar, desmobilizando-se qualquer força social de mudança e desnutrindo o debate político e uma democratização estrutural na gestão. Aliando-se à direita, o PT aderiu ao seu modo tradicional de fazer política, “peemedebizando-se”, rebaixando-se ao padrão secular do clientelismo, do fisiologismo, com as práticas ilícitas daí decorrentes, historicamente notórias (“O PT apenas fez o que todos sempre fizeram”, defendeu-se Lula, em 2005). Foi o preço a ser pago pela governança sem conflitos, presenteada com a contrapartida de nenhuma ameaça real de ‘golpe’ alardeado por setores do PT: derrubar para que, se os interesses do Capital e seus esquemas políticos não foram combatidos e sim incorporados?

A novidade muito eficaz foi o modo lulista de governar sendo oposição a si mesmo – sempre derrotada, claro. Explica Vladimir Safatle em artigo publicado na revista Carta Capital: “trata-se da transposição dos conflitos entre setores da sociedade civil para o interior do Estado. Assim, durante o governo Lula, o conflito entre monetaristas e desenvolvimentistas encontrou guarida na briga entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda. A luta entre ruralistas e ecologistas incrustou-se nos embates entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente. Do mesmo modo, as querelas entre os militares e os defensores dos direitos humanos expressaram-se na colisão entre o Ministério da Defesa e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O que seria, em situações normais, sintoma de esquizofrenia política foi, graças à posição de Lula como ‘mediador universal’, uma oportunidade para o governo ‘ganhar em todos os tabuleiros’, sendo, ao mesmo tempo, o governo e sua própria oposição”.

O filósofo e psicanalista Tales Ab´Sáber diz que “o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo foi resolvido num projeto de pacto social. As classes trabalhadores, particularmente os muito pobres, tiveram que aceitar aquilo que o governo pactuou com as elites que era o possível de dar. E não mais. Quem dava voz a certa tensão classista organizada e de massas no Brasil era o próprio PT. E, no projeto do governo Lula, esse vetor do PT foi radicalmente desmobilizado” (Caros Amigos, fevereiro de 2013).

Dilma, mais centralizadora e gerencial, e menos permeável a mediações, já provoca inflexões nessa composição pendular da administração. Mas o essencial, que é a implementação do capitalismo monopolista no Brasil – com significativa presença indutora do Estado, favorecendo a concentração de setores e sua cartelização (como frigoríficos, bebidas, alimentos em geral, telefonia, aviação, bancos, etc.) – prossegue.

No plano social, há certa mistificação na propalada melhoria das condições de vida da população pobre e ‘remediada’: 1) 80% dos novos empregos criados na década são de até um salário mínimo e meio; 2) 50% dos que têm ocupação continuam sem direitos trabalhistas e previdenciários; 3) quase metade dos rendimentos de uma família da chamada ‘nova classe média’ é gasta com educação e saúde privadas; 4) em 2003, eram 1,5 milhão de brasileiro(a)s endividados; hoje são 8 milhões; 5) Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília estão entre as cidades mais caras do mundo, mantendo legiões em situação de miserabilidade e mais vulneráveis a drogas devastadoras, como o crack – sem que o Estado estruture qualquer política de assistência e saúde mental.

O economista Alexandre de Freitas Barboza, do Ceprab, pondera (Brasil de Fato, janeiro de 2013): “o problema tende a se agravar se o governo continuar achando que, ao atacar a pobreza extrema, está automaticamente atacando a desigualdade. Concentrar recursos naqueles que mais precisam, de forma isolada, no intuito de melhorar suas condições é a linha de atuação mais confortável: evita atritos com a ampla coalizão política que apoia o governo, propicia estatísticas positivas e garante dividendos eleitorais.”

Em outras palavras, para garantir ganhos duradouros dos mais pobres, de profundo reordenamento social, o governo teria que expandir direitos universais à educação e saúde públicas, habitação e transportes de massa, entre outros. E, por consequência, enfrentar interesses que até aqui não teve coragem de enfrentar. Roberto Leher, em alentado artigo intitulado “Brasil: agravamento da crise, coesão do bloco dominante e novos horizontes para as lutas sociais”, ressalta que “como argumenta Gramsci, a hegemonia de um grupo, se envolve concessões fundamentais, vive um processo de transformismo. E o PT fez concessões no que é fundamental: na macroeconomia, na questão agrária, no repasse de recursos públicos para as frações rentistas e na forma de inserção do país na economia –mundo”. Nas composições políticas com o patrimonialismo, com o clientelismo e com a corrupção também, acrescentamos.

Não há novo modelo sendo gestado. Os Governos Lula/Dilma mantiveram intocados os mecanismos estruturais de reprodução da desigualdade social brasileira. Relatório da ONU, de 2012, revela que o Brasil se tornou o quarto maior destino de investimentos no mundo. A outra face dessa vinda farta do capital estrangeiro foi a desnacionalização das empresas: 1.296 desde 2004. Frações dominantes são contempladas, desigualmente, pelas políticas econômicas. Os bancos (grande capital financeiro), o agronegócio, as empreiteiras, o setor mineral (commodities) e industrial – em especial as montadoras – formam o bloco de poder hegemônico e recebem, além de isenções tributárias, polpudos aportes do BNDES.

Seguimos com terra concentradíssima (70 mil grandes propriedades do agronegócio dominam ¼ do nosso território), nossas exportações estão baseadas em ‘commodities’ minerais e agrícolas e nossa matriz energética não caminha para mudança, com todos os danos ambientais que a base tradicional causa. Grandes grupos econômicos e financeiros controlam, com seus financiamentos, o processo eleitoral da nossa democracia bienal, formal e banal. O estímulo ao carro individual engarrafa cada vez mais o trânsito nas nossas grandes cidades, o saneamento básico não existe para 40% do(a)s brasileiro(a)s, nossos corpos hídricos e mananciais seguem maltratados, a prevenção para extremos climáticos é nenhuma e as políticas de habitação, saúde e educação para os ‘de baixo’ são pontuais e descontínuas.

A vida cotidiana nos grandes centros urbanos tem trânsito cada vez mais caótico, já que não se investe em transporte coletivo, e graves problemas sociais persistem: a população de rua do Rio, por exemplo, cresceu 31% nos últimos 2 anos! A relação entre os entes da Federação – municípios, estados e União – é a mesma de sempre, ‘pires na mão’, troca de favores, liberação de emendas parlamentares individuais para cevar base eleitoral, acordos partidários menores – inclusive no Congresso Nacional, que leva desmatador a presidir a Comissão de Meio Ambiente do Senado e fundamentalistas racistas e homofóbicos a dirigirem a Comissão de Direitos Humanos da Câmara. “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”.

O Orçamento de 2013, só agora aprovado, é a escritura contábil desse modelo: nada menos que R$ 900 bilhões (41,6%) são destinados para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Valor 20% maior do que o pago em 2012, 4 vezes superior ao pagamento de todos os servidores públicos (incluindo os aposentados), 10 vezes mais que o destinado à Saúde, 12 vezes o gasto previsto em Educação e 162 vezes o reservado para a Reforma Agrária.

É fato que o número de greves e de conflitos agrários cresceu. Os dados disponíveis indicam que em 2010 elas foram 446 (1.186 conflitos pela terra) e no ano seguinte 554 (1.363 no campo). Naturalmente todos esses movimentos urbanos têm pautas econômico-corporativistas, e em 80% dos casos houve conquistas de reajustes iguais ou um pouco acima da inflação, caracterizando uma ‘insatisfação sob controle’.

 5. Da necessidade do PSOL

Nos anos 30 dos século passado, existiu na Itália um vigoroso e criativo movimento chamado “Giustizia e Libertá”. De viés socialista, já combatia os desvios do stalinismo e, claro, era também antifascista. Buscava aproximar justiça social, cuja plena realização só seria possível em uma sociedade  socialista, com liberdade.  Nosso partido tem como razão de ser atualizar, no século XXI, esses objetivos. Por isso somos um partido necessário, o que, porém, não assegura que seguiremos crescendo e nos consolidaremos como organização política transformadora, de quadros qualificados, de massas: o PSOL ainda é um partido em construção. Construção de quase uma década - concomitante com a mutação do PT, o êxito eleitoral do lulopetismo e o crescente desencanto com a política. Construção ‘piracema’, nadando contra a corrente, numa conjuntura muito difícil para a esquerda fiel aos seus princípios.

 No cenário nacional, somos o único partido com representação no Congresso Nacional que questiona os fundamentos do sistema. Todos os demais, mesmo que em retórica (cada vez mais escassa), no nome da legenda ou no programa mencionem ‘socialismo’, estão adaptados como partidos da ordem. O próprio já citado André Singer, em seu livro, reconhece isto: “a conversão da segunda alma do PT ao lulismo e seu correspondente ideológico, o desenvolvimento de um capitalismo popular, deixou vazio o lugar do anticapitalismo, hoje disputado por pequenas siglas como o PSOL e o PSTU” (p. 219). Pequeno como o PT foi um dia, lembramos. Pequeno mas com vocação de grandeza, que temos o dever de viabilizar.

 Ainda incipientes, seguimos, local e nacionalmente, com grave debilidade organizativa e somos ainda mais um partido de correntes do que com correntes, com suas congênitas posturas hegemonistas e, quase sempre, beligerantes internamente. É costumeira a acirrada disputa por cargos nas direções para aparelhá-los a serviço de um grupo – ali demarcando suas posições próprias ou, na impossibilidade disso, até deixando a função inoperante. Núcleos e setoriais, tão importantes para a vida cotidiana do partido, têm funcionamento precário. As exceções, como o Setorial de Mulheres, razoavelmente ativo e unitário, são poucas. A formação política é inexistente. Nossa comunicação com a população, mesmo nas novas mídias, ainda é rudimentar. Reconheçamos que nosso dinamismo, no quadro de pouca mobilização social, está hoje dependente do processo eleitoral.

 A construção do PSOL pressupõe projeto comum. Este, claro, comporta divergências políticas travadas em alto nível, e, em especial, a partir da confiança mútua. O papel das tendências não pode se apequenar: para servir de mecanismo de representação de parte da militância nos espaços de direção, antes elas precisam representar ideias, causas, visões próprias. É preciso nos colocarmos de acordo em relação a isto, através de conversas francas entre os dirigentes de todas as correntes e as figuras públicas do partido, superando o que Helio Pellegrino classificava como ‘narcisismo das pequenas diferenças’. Não avança um processo onde vejo o(a) companheiro(a) como inimigo, e faço movimentos permanentes para excluí-lo. A autocrítica, esquecida e saudável tradição da esquerda, também precisa ser exercida, pois há equívocos e procedimentos enviesados que têm de ser assumidos e corrigidos. Mestre Florestan Fernandes alertava para um fato “dramático e doloroso” que, muitas vezes, se repete na esquerda: “grupos políticos empenhados em se destruírem reciprocamente e, assim, manter o sistema de poder das burguesias nacionais e do imperialismo”. Já passa da hora de superarmos a paralisia, o ‘blocamento’, e fazermos um pacto político de funcionamento e de objetivos. É urgente reafirmar – e praticar – que as decisões das instâncias, tomadas democraticamente, precisam ser respeitadas. Quem não cumpre as deliberações trabalha contra o partido e precisa responder por isso.

No período eleitoral, por sinal, oportunistas e carreiristas nos procuram para implementar seus projetos individualistas, e é preciso estar atento para barrá-los, sem confundi-los com pessoas de boa vontade política e pouco grau de formação. Os maiores riscos que hoje corremos são, de um lado, o do fisiologismo, do pragmatismo eleitoral corrompido e do adaptacionismo. De outro, o do isolamento, do sectarismo e do vanguardismo, que é o principismo sem mediação com a realidade concreta. Urge combater os desvios que podem nos jogar na vala comum dos partidos invertebrados, insossos. Urge discernir entre a necessária firmeza estratégica e nitidez ideológica e a estreiteza de posições, que não dialoga com a ‘massa popular’ no sentido de, pedagogicamente, ajudá-la a se tornar povo. Um partido como o PSOL que queremos consolidar não começa nem termina nele próprio: é, com suas claras fronteiras ideológicas e éticas, instrumento da emancipação dos oprimidos.

Há, entre nós, aqueles que ainda se movimentam nos cenários do contexto social capitalista abordado por Marx e Engels no Manifesto de 1848, ou da Revolução Russa de quase um século atrás. Em sua concepção de partido segue em vigor o ‘partido operário vanguardista’, com disciplina organizativa similar à da fábrica do industrialismo nascente. As condições de luta mudaram, 70% da população do planeta já vive em cidades médias e grandes, a classe trabalhadora se diversificou – até espacialmente –, o Capital sofreu grandes mutações em suas formas de dominação, com a chamada ‘desmaterialização da produção’. De lá para cá até as formas de comunicação humana sofreram alterações significativas – aqui estamos nós disponibilizando teses e explicitando nossas divergências na tela do computador, em rede...

 A luta não se dá mais exclusivamente na porta das fábricas, mas também – e muitas vezes principalmente – nas favelas, nos terminais de transporte de massa, nos canteiros de obras, nas escolas, nas praças públicas, na consolidação dos direitos das minorias LGBT, quilombolas e indígenas, nas diferentes manifestações culturais e nos movimentos pela igualdade de gênero, contra o patriarcalismo e o sexismo.

O partido, por mais revolucionário que pretenda ser, não monopoliza mais a representação política, ainda que continue tendo a função insubstituível de universalizar as lutas e oferecer-lhes um duto para interferir nas esferas do Poder.

 Isso tudo transformou significativamente as condições da luta de classes e as formas de organização dos diferentes setores (inclusive dos partidos políticos). E sofisticou as formas de exploração e alienação na ‘sociedade líquida’, embora, evidentemente, persista em muitas partes do mundo a exploração direta, braçal, violenta, do trabalho humano – inclusive na República Popular da China.

Na sociedade cada vez mais urbanizada e planetária, do globalitarismo consumista, que deixa ¼ da população “inempregável”, “excedente”, “sobrante” – sobretudo no hemisfério Sul – a luta por democracia e cidadania participativa ganha força. E traz, na malha urbana, um novo elemento na disputa da mais valia, inscrita na atualíssima batalha pela socialização dos meios de governar, no plano das Políticas Públicas e de seus orçamentos. Explica o economista José Carlos Assis, em documento para debate apresentando no final de 2012: “a renda real do trabalhador não está limitada ao que consegue na relação de produção, mas se realiza também na relação com o Estado através da influência política da cidadania ampliada na definição dos tributos e da destinação dos recursos públicos”.

É inegável que o Estado incorporou demandas dos trabalhadores quando instituiu, no século passado, após décadas de domínio ‘imperial’ burguês e euforia crescimentista do setor privado, instituições como legislação trabalhista, previdência pública e bancos centrais reguladores, ouvindo a voz dos sindicatos. O Poder Público segue como palco da disputa de interesses de classes. Com a crise das economias centrais, reitera-se seu papel decisivo em: I) redistribuição de parte da renda nacional, em forma de serviços públicos, para os setores mais espoliados; II) investimento em setores estratégicos da infraestrutura; III) controle das atividades econômicas dos setores privados monopolizados ou oligopolizados.

Parece-nos falso o dilema ‘partido de quadros X partido de massas’. Discordamos dos que consideram que a forma para se construir um partido à altura de nossos desafios históricos é recorrer a filiações em massa para uma ampliação eleitoral. Filiações sem critério podem fazer do PSOL mais um na geleia geral: a informação e a formação política básica são imprescindíveis. A maior força do PSOL tem sido sua coerência de partido com nitidez ideológica e fronteiras éticas.  Com quadros qualificados, mas aberto a filiados ainda em processo de formação política.


6. Um Programa para o Brasil

Tarefa imediata para o PSOL, que deve ser desenvolvida com os debates preparatórios para o IV Congresso, sem prejuízo de nossa presença nas lutas sociais do momento, é a construção de um esboço programático para a sociedade brasileira, na perspectiva da nova economia, ecossocialista, libertária, da radicalização da democracia e da busca da identidade nacional.

Estamos desafiados a elaborar um Programa Básico que nos situe para além da ‘queda de braço’ entre a ‘esquerda e a direita da ordem’, que falsamente ‘polarizam’ entre maior ou menor crescimento, maior ou menor concentração de renda, maior ou menor dependência externa, maior ou menor desmatamento, maior ou menor repressão às lutas sociais. Uma dicotomia que deixa os movimentos sociais reféns da opção pelo ‘menos pior’, mas não menos pior. Sem esse esboço que nos distingua, sequer a afirmação de candidatura própria e conversas sobre alianças eleitorais terão base político-programática para prosperar.

Pede-se de nós que, ao negarmos o que é implementado ou afirmado pelo bloco no Poder, apresentemos também alternativas: a cada ponto, um contraponto. Temos que ser, sempre, críticos e propositivos, sob pena de não sermos ouvidos ou ficarmos reduzidos à caricatura dos ‘contra tudo’. A batalha é também simbólica, ‘vernacular’: onde os dominantes encontram recursos, na crise, para resgatar bancos, cobramos o porquê de não se resgatar pessoas do desemprego e dos baixos salários; quando eles falam em retomada do crescimento econômico, temos que reagir lembrando que ele só é desenvolvimento se for sustentável social e ecologicamente equilibrado, e se “contribuir para democratizar as relações sociais em todos os domínios da vida coletiva - na empresa, na rua, na escola, no campo, na família, no acesso ao direito” (Boaventura de Sousa Santos, FSP, 23/1/2012)

Esse Programa Básico, a ser propagandeado o quanto antes, inclusive como forma de nos inserirmos do ‘debate sucessório’ deflagrado em torno de ‘personalidades candidatáveis’ – 20 meses antes das eleições nacionais! –, será plataforma para debate com todos os setores sociais interessados. Mais imediatamente, ele deve ser ‘materializado’, no que couber, em iniciativas legislativas (no Congresso Nacional, sobretudo) vinculadas à propostas tributárias e fiscais distributivas, previdenciárias, educacionais, administrativas e políticas. Para isso mesmo: instigar, abrir a polêmica, gerar controvérsias, marcar nossa posição.

Assim iremos nos inserir, com fisionomia própria, na disputa eleitoral já antecipada com o lançamento de candidaturas, bem no estilo personalista e despolitizado em voga, onde o mais nítido é a falta de nitidez. E no qual, até aqui, todos, incluindo Marina Silva e sua indefinida ‘Rede’, se assemelham. A formulação da nossa Plataforma, já presente pontualmente em diversas campanhas e lutas em curso, deve ser desenvolvida a partir dos seguintes eixos:

a) Afirmação do público sobre o privado, crítica à agenda de privatizações (PPPs, leilões das bacias petrolíferas, concessões crescentes de espaços públicos a poderosos grupos empresariais etc), ao papel de fomento de grandes grupos privados assumido pelo BNDES e estímulo ao controle social das empresas estatais e públicas (buscando formas democráticas de gestão das empresas públicas, em que os próprios trabalhadores participem da gestão e definição dos cargos de comando, seguindo o princípio da autogestão).

b) Contínua redução dos juros, controle do fluxo de capitais, auditoria da dívida pública (41,6% do Orçamento 2013 destinam-se ao pagamento de juros e amortizações, 20% maior que o pago em 2012), questionamento do ‘dogma’ do superávit primário, revisão de privatizações suspeitas, como a da Vale.

c) Programa de Reforma Agrária agroecológica, com consequente política agrícola de crédito para insumos, recuperação de solos, cuidado ambiental, assistência técnica, educação contextualizada, oferta de sementes e mecanismos de escoamento da produção. Visando romper com a lógica do monocultivo e do uso intensivo de insumos.

d) Reforma Tributária progressiva, que taxe efetivamente os ganhos de Capital, os rentistas, as grandes fortunas e heranças.

e) Reorientação da matriz energética, com investimentos em fontes limpas e renováveis, como a eólica e a solar.

f) Prioridade para as políticas estruturantes de educação universal e pública, saúde, habitação e transportes, que efetivamente promovem redistribuição de renda de maneira duradoura.

g) Garantia dos direitos trabalhistas, sempre ameaçados pela ‘flexibilização’, defesa das 40 horas semanais e do fim do fator previdenciário, e ampliação dos direitos civis das minorias secularmente discriminadas em função de sua orientação de gênero, sexual, religioso ou etnia.  Fomento a formas solidárias de produção, circulação de mercadorias e consumo.  

h) Democratização dos meios de comunicação nos parâmetros propostos pela  Conferência Nacional de Comunicação, para que haja efetiva circulação de informações e opiniões, sem o monopólio de grupos restritos, mais voltados para a liberdade de empresa que de imprensa.

i) Reforma Política, nos termos propostos pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política, com o financiamento exclusivamente público, austero e transparente das campanhas, e a efetiva democratização dos meios de acesso ao Poder.

j) Combate sistemático à corrupção endêmica, através do aprofundamento da transparência e do controle social na administração pública.

l) Política de segurança que supere a lógica de enfrentamento bélico, encarceramento e criminalização da pobreza. Revisão da política de drogas, substituindo a lógica proibicionista com o fortalecimento dos mecanismos de regulação, saúde mental e educação.

m) Financiamento da inovação tecnológica e do conhecimento, que rompa com a subalternização do país às economias centrais.

Rio de Janeiro, abril de 2013

Equipe do Mandato Chico Alencar (deputado federal/RJ);
Eliomar Coelho (vereador do Rio);
Paulo Pinheiro (vereador do Rio);
Jorge Guimarães (coordenador da Liderança do PSOL na CD)