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Jornalista, por conta de cassação como oficial de Marinha no golpe de 64, sou cria de Vila Isabel, onde vivi até os 23 anos de idade. A vida política partidária começa simultaneamente com a vida jornalística, em 1965. A jornalística, explicitamente. A política, na clandestinidade do PCB. Ex-deputado estadual, me filio ao PT, por onde alcanço mais dois mandatos, já como federal. Com a guinada ideológica imposta ao Partido pelo pragmatismo escolhido como caminho pelo governo Lula, saio e me incorporo aos que fundaram o Partido Socialismo e Liberdade, onde milito atualmente. Três filh@s - Thalia, Tainah e Leonardo - vivo com minha companheira Rosane desde 1988.

domingo, 24 de março de 2013

Chavez e nuestra America


Paulo  Passarinho- 21/03/13

Chávez saiu da vida e entrou para a história, em um momento extremamente delicado para as experiências em curso, na América Latina, de superação da herança neoliberal, decorrente das reformas antinacionais implementadas nos anos 1990.
A delicadeza do atual momento se relaciona às dificuldades econômicas que a crise internacional coloca para os nossos países, e, também, pela permanente pressão e influência da política externa dos Estados Unidos, em nossa região.
De uma forma genérica, os governos que emergiram a partir do final da última década do século XX em boa parte dos nossos países, com vitórias eleitorais contra os defensores das mudanças de figurino liberal, procuraram, sob o ponto de vista econômico e social, reagir aos desequilíbrios existentes com o fortalecimento ou criação de programas de transferência de renda aos setores mais pobres de nossas sociedades.
Afora as peculiaridades do posicionamento político de cada um desses governos, todos eles assumiram posições reformistas, frente à tragédia social que mergulhou milhões de latino-americanos em mais pobreza e miséria. Do reformismo conservador de Lula ao reformismo revolucionário de Chávez, essa estratégia foi facilitada pelo fato de todos os governos terem se aproveitado da expansão do comércio internacional, que beneficiou os países da região, exportadores de commodities.
O conservadorismo dos governos pós-2002 no Brasil se traduz na manutenção de todo o arcabouço jurídico-institucional do processo de contra-reformas iniciado por Collor e consolidado na era FHC, além da continuidade das linhas mestras da política macroeconômica – imposto ao país no acordo com o FMI, em 1999 – e, ainda que em ritmo mais lento, das privatizações.
Já o reformismo revolucionário de Chávez não se baseou em mudanças estruturais da economia venezuelana, com transformações substantivas no padrão de distribuição de renda, produção e propriedades do país. Apesar das nacionalizações realizadas e do início de um processo de reforma agrária ainda muito tímido, o vigor revolucionário teve como lastro uma engenhosa estratégia voltada para a transformação do quadro institucional do país, em prol de um maior protagonismo popular. Esta é com certeza a maior virtude do legado de Chávez.
Desde a sua primeira campanha à presidência, Hugo Chávez sempre deixou claro o seu objetivo de refundar a república venezuelana. Ao assumir, e referendado em um plebiscito, convocou uma Constituinte exclusiva, livre e soberana, que rebatizou o país como República Bolivariana da Venezuela, em consonância com o espírito de liberdade e fortalecimento da cidadania e do poder popular, encarnados na nova Carta. Além dos três tradicionais poderes, a verdadeira nova república criou dois outros: o Eleitoral e o Cidadão, permitindo entre outras inovações a inédita cláusula constitucional do mecanismo do referendo para a continuidade ou não de um mandato executivo, em meio ao seu exercício, desde que amparado em manifestação formal de um percentual mínimo definido de eleitores. Aboliu o Senado e ampliou os poderes das Forças Armadas e do presidente da República. E, acima de tudo, não temeu o conflito com os segmentos conservadores e muito poderosos do seu país.
Mas, a herança propositiva de Chávez, para a criação de uma nova institucionalidade, não se limitou às fronteiras da sua Venezuela. Coerente com os melhores sonhos de Simon Bolívar, foram propostas e criadas novas instituições voltadas para uma verdadeira integração latino-americana. Integração que se afaste da inspiração do “livre-comércio” e se funde na solidariedade continental, através de políticas coordenadas por nossos Estados Nacionais, para enfrentar e superar estruturas que concentram renda, riqueza e poder em torno de corporações multinacionais.
Instituições como o Banco do Sul, o Conselho de Defesa da UNASUL e a Telesur são exemplos que demonstram que existem caminhos alternativos extremamente importantes e plenamente viáveis. Contudo, essas foram iniciativas que esbarraram especialmente, para a sua plena realização, no reformismo conservador vigente no Brasil.
A proposta mais complexa e abrangente para o Banco do Sul, por exemplo, defendida pelos “bolivarianos”, o concebe como uma instituição com três diferentes funções básicas.
Primeiramente, como um banco de fomento continental – não condicionado pelo interesse das multinacionais, mas por definições relacionadas ao desenvolvimento interno dos nossos países, voltado ao combate das desigualdades. Um banco coordenador e potencializador de uma rede de bancos de desenvolvimento estatais, orientados para um novo modelo de crescimento. Uma segunda dimensão do Banco do Sul o situaria como um embrião de um banco central latino-americano - instância de reservas cambiais da região e instrumento de defesa dos nossos países, em relação às instabilidades financeiras de caráter externo. E uma terceira função do Banco do Sul estaria relacionada à perspectiva de convergência de nossos países para um sistema monetário comum.
Essas proposições sempre encontraram fortes resistências no governo brasileiro, seja pelo comando de Lula ou de Dilma. O caminho trilhado por nosso país não aposta em uma integração regional desse tipo. O governo brasileiro é hoje – inclusive com a forte ação do BNDES – um poderoso articulador dos interesses de multinacionais, de origem brasileira e estrangeira, que enxergam o mercado latino-americano pelas lentes do “livre-comércio”, além de ser particularmente sensível às pressões dos Estados Unidos.
Com relação a essas pressões, encontra-se em curso, por exemplo, negociações entre a Secretaria de Comércio dos Estados Unidos e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – sob a coordenação direta do ministro Fernando Pimentel – visando uma proposta de acordos bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos, nas áreas de serviços, investimentos, transportes e tributos. Conforme explicitado pelo próprio ministro, a proposta é que a elaboração desses acordos possam ser discutidos “sem a necessidade de aprovação dos membros do Mercosul”.
Com essa realidade, é evidente e explicável que a proposta bolivariana para o Banco do Sul não tenha encontrado maior apoio por parte do Brasil. Assim como, ao restabelecer um acordo militar com os Estados Unidos, durante o segundo mandato de Lula, e ao boicotar a veiculação da programação da Telesur em nosso país os governos pós-2002 em nada procuraram fortalecer o que de melhor poderia ser desenvolvido, a partir do Conselho de Defesa da UNASUL e de uma rede televisiva de comunicação de massa em nosso continente, alternativa aos oligopólios privados que dominam esse setor.
Porém, o legado das propostas institucionais e transformadoras de Chávez aí está. Esperamos que o amadurecimento das lutas populares e de novas lideranças - que superem a ação da esquerda que sucumbiu no Brasil, pela nefasta influência do lulismo - tenham a capacidade de transformar o que é hoje um sonho em realidade palpável.

21/03/2013
 


sábado, 16 de março de 2013

Você já foi à Índia? Não? Então vá

Leandro Uchoas, jornalista de boa cepa, nos traz o relato de uma roteiro vivido nos atalhos da vida de Mahatma Gandhi, o grande líder indiiano, cuja vida de lutas pela independência do país, pautada na desobediência civil e na afirmação de valores, é hoje referência para sua militância. Está aí uma narrativa que leva o leitor a mergulhar no clima existencial e na alma locais com uma precisão de tal forma instigadora que torna impossível não sentir até inveja da experiência do outro. De qualquer forma, fica o consolo, lendo o texto, de saber como vale a pena uma longa viagem à India de Gandhi

India: A humanidade são eles



A fascinante e peculiar trajetória de um peregrino latino-americano pelo país mais rico e diverso do mundo, a Índia.
ITEM 1. ENFIM, ÍNDIA
Foi em uma cidade de nome esquisitíssimo que pisei pela primeira vez no país mais incrível do mundo. Em Thiruvananthapuram, comecei a descobrir a Índia – que, como a China, tem uma população gigantesca e cultura milenar. Logo no primeiro dia, dos 42 que passei no país, vi homens montados em elefantes, fiéis peregrinos purificando-se em um lago, templos monumentais, uma música de sonoridade totalmente nova, casa de marajás, tuck-tucks, mulheres em lindas vestes, e uma cidade organizada de uma maneira totalmente outra. Foi como se tivesse aterrissado em uma nova galáxia.
Apenas durante a primeira semana, viajei de barco, moto, carro, avião, tuck-tuck, bicicleta, trem, ônibus – percorrendo seis cidades em sete dias. Este relato é uma tentativa de, resumidamente, deixar algum registro. Mas, certamente, não há como transformar em palavras as sensações que vivenciei. Atravessar o estado socialista de Kerala ouvindo “Clube da Esquina” no walkman, vendo rostos morenos novos ao meu lado, e assistindo a Índia passar pela janela do trem, é algo que não tem como descrever para os que não sentiram. É como dar um aperto de mão na humanidade inteira. Como dar um abraço no mundo. Uma espécie de êxtase revestido de utopia. E era isso, claro, o que fui fazer na Índia. Queria ir atrás de utopia. Fui, e encontrei.
ITEM 2. POR QUE A ÍNDIA

De história milenar, berço da espiritualidade, e um dos raros locais, hoje, dotados de outras organizações sociais, com referências econômicas totalmente distintas, a Índia é um país único. Sempre quis conhecer. A lembrança mais antiga desse desejo é de 1999. Quando um professor, nos EUA, me perguntou que país eu gostaria de conhecer, eu brinquei: “o Brasil. Eu ainda não conheço o Brasil”. Ele disse que essa resposta não valia. Então respondi, sem pestanejar: “a Índia”.
Guardava dinheiro há mais de dois anos para essa viagem, que queria fazer com minha irmã, professora de yoga. Então, ficou claro que não conseguiríamos conciliar nossas agendas (ela foi para a Índia três semanas depois de meu retorno). Fiquei triste na época. Investigar, sozinho, um cenário totalmente novo seria um desafio e tanto. Com o tempo, no entanto, ficou claro que foi melhor assim. Sozinho, pude ir a boa parte dos lugares que desejava conhecer (ainda faltam muitos! Não conheci Calcutá, de Madre Teresa, nem Ranchi, de Yogananda, nem Puttaparthi, de Sai Baba, nem Dharamsala, do Dalai Lama, nem Rishikesh, do yoga, nem Varanasi, do Ganges, nem tantos outros lugares. Tenho que voltar!).
Basicamente, acredito na necessidade de se reinventar, a cada dia, nossa vida. De elaborar propostas novas, escrever o dia com outra caligrafia, encarar pessoas com outros rostos. É o jeito mais rápido e gostoso de crescer como ser humano. Isso é o que fui fazer lá. Queria que a Índia recheasse meu coração de idealismo, de vontade de melhorar o mundo e a mim. E não tenho dúvidas de que ela atendeu a meu pedido. A viagem foi um sucesso em todos os aspectos.
Logo no início, ficou claro pra mim que eu olhava a Índia de uma perspectiva incompleta, típica de um ocidental com experiência rarefeita pelo Oriente. Eu pensava: “preciso conhecer esse outro lado interessante da humanidade”. Percorrendo a Índia, ficou claro que lá existe gente em todo lugar. São 1,3 bilhão de pessoas – quase sete vezes o Brasil! Não há ruas desertas, nem região desabitada. Eles não são “outro lado da humanidade” – isso somos nós. Na verdade, a humanidade são eles.
ITEM 3. MAHATMA GANDHI É O CARA

Foi ele quem me trouxe para a luta, e isso já seria suficiente para que eu tivesse por ele uma relação de respeito. O fato é que, de longe, minha principal meta na Índia, dentre tantas, era seguir os passos de Mahatma Gandhi. Ir a todos os lugares onde ele construiu sua biografia notável. Nos últimos 15 anos, devo ter lido quase todos os livros sobre ele publicados em língua portuguesa. E embora eu tenha sido convencido, por Kailash Satyarthi (item 4), a não mais me definir como “gandhista”, minha admiração pelo Mahatma apenas aumentou durante a viagem.
A princípio, eu queria tentar ir além da imagem que o mundo criou de Gandhi, dos diferentes gandhis vendidos ao senso comum, confundindo pacifismo com passividade, em benefício da ordem, da manutenção do status quo. O Gandhi que me trouxe para a luta, que me transformou num homem de esquerda – embora muitos desinformados o considerem reacionário –, defendia a desobediência civil, e a não-violência ATIVA.
O modelo é simples: diante de uma injustiça, desobedeça as leis e as autoridades, sem utilizar de violência como arma. Tenha clareza sobre quem é seu inimigo, mas não tenha ódio por ele. A síntese é essa. Boa parte dos militantes movem-se pelo sentimento de indignação diante das injustiças. É natural. Gandhi me ensinou, porém, que há um combustível ainda melhor para os militantes do que a indignação, que é o amor pela humanidade.
Por mais que eu me esforce, não tenho como definir a satisfação de ir a cada lugar onde viveu Mahatma Gandhi. Era maravilhoso. Logo no terceiro dia de viagem, ainda na África do Sul – onde fui antes, porque ele também viveu lá – fui apresentado para Ela Gandhi, neta do Mahatma. Ex-deputada super-atuante, e uma das mais ativas pacifistas do mundo, ela me convidou para um chá em sua casa. Humilde, desculpou-se pela falta de energia no apartamento, que lhe impediu de cozinhar para mim… De sua voz pausada, brotava uma sensação de afeto que tomava a atmosfera inteira. Em Ahmedabad, na Índia, conheci outros netos e bisnetos do Mahatma.
Há elementos de sua ideologia com os quais eu discordava, mas passei a respeitar após a viagem. Por exemplo, sua ideia de tentar propagar a fabricação das próprias roupas me parecia, antes da viagem, excessivamente utópica, além de parecer a negação do desenvolvimento das forças produtivas – ou seja, um retorno ao modo de produção medieval. Mas na Índia, percebi que 70% dos habitantes ainda vivem em vilas. Isso significa nada menos do que cinco “brasis” vivendo quase fora do capitalismo, em um sistema econômico coletivizado e auto-suficiente.
Percebi que a proposta do Mahatma estava longe de ser “excessivamente utópica”, até porque ele a elaborou depois que ele FOI PESSOALMENTE MORAR JUNTO AOS POBRES. E conclui que, para fazer qualquer juízo de valor, eu teria que conhecer muito mais a Índia, sua história e o pensamento de Gandhi.
Vou tentar resumir a minha extensa peregrinação: Na África do Sul, estive em Durban, onde Gandhi fundou sua primeira comunidade alternativa, a Phoenix Assentment, inteiramente restaurada. Lá também tem o Centro Internacional de Não Violência (ICON), principal do mundo no estudo do tema. Em Pietermaritzburg, fui até a estação onde ele foi atirado do trem, em 1892, por ter a pele negra e estar viajando na primeira classe, episódio que teria, segundo ele, o estimulado a lutar por justiça social.
Em Johanesburgo, conheci a linda casa onde ele viveu com Hermann Kallenbach. Também conheci a casa onde morou com a família, e a cruel prisão onde esteve por quatro vezes – lugar assustador. Lá, em Constitutional Hill, hoje funciona um museu e o órgão máximo de Justiça, equivalente do STF do país. Foi lá que encontrei a sandália que Gandhi deu ao general Smuts, seu adversário político, de quem se tornou amigo. Smuts devolveu a sandália 25 anos depois, pelo correio, após ficar sabendo que Gandhi havia empreendido a incrível Marcha do Sal, dizendo: “usei essa sandália por 25 anos, mas já não me considero digno de utilizar um calçado feito pelas mãos de um homem tão grande”.
Já na Índia, estive na Mahatma Gandhi University, em Kottayam. O diretor da Escola de Estudos Gandhistas e de Desenvolvimento Socioeconômico, John Moolakkattu, foi bastante receptivo, e inclusive me convidou para passar o Natal com sua família, que era cristã. Também no estado de Kerala, estive em Vaikom, em um templo lindíssimo em que, tempos atrás, as castas hindus mais altas tinham proibido as castas mais baixas de frequentar. Gandhi foi à cidade só para lutar contra isso. No lugar onde viveu lá até vencer a luta, hoje funciona a sede do Partido Comunista, o mais forte do estado.
Em Bombaim, estive na casa onde ele morou quando esteve na cidade (Mani Bhavan), hoje um simpático museu em sua homenagem. O site deles é uma das mais completas compilações de textos de e sobre Gandhi. E em Pune, estive no Agakhan Palace, onde ele esteve preso de 1942 a 1944, e onde morreram seu fiel secretário e amigo, Mahadev Desai, e sua esposa, Kasturba Gandhi. Ambos estavam presos voluntariamente, apenas para acompanhar Gandhi.
Planejei estar na cidade no dia 1º de janeiro, Dia Internacional da Paz, em homenagem a Kasturba, que deveria ser reconhecida como uma das principais lideranças da independência indiana, caso não vivêssemos em um mundo machista. O próprio Gandhi lhe considerava sua “melhor professora de não-violência”. Ela morreu deitada em seu colo, em 22 de fevereiro de 1944. “Perdi a melhor metade de mim”, disse ele. E todos os dias 22, de todos os meses, Gandhi jejuava e declamava todos os versos da Bhagavad Gita, em homenagem a Kasturba. Fez isso até o fim de sua vida.
Em seguida, deveria ir a Wardha. Na verdade, estava cansado de tanta viagem, e tinha desistido de ir. Mas estava lendo o livro “Autobiografia de um Yogue”, de Paramahansa Yogananda. No dia seguinte de desistir, abri o livro. Ao mudar de página, o novo capítulo se chamava “Com Mahatma Gandhi em Wardha”. Fiquei assustado com a coincidência, e interpretei aquilo como um aviso. Pouco depois, o dono do hotel bateu na porta dizendo que eu não tinha como ficar mais, porque o hotel iria ficar cheio, e eu não reservara para o dia seguinte. Decidi, na hora, ir a Wardha. A viagem foi uma verdadeira aventura! No ônibus de Ahmandabad a Wardha, ao invés de cadeiras havia camas! Tive que dormir ao lado de outro passageiro, enquanto o ônibus passava pela rodovia esburacada. Aliás, antes, vi as cavernas budistas de Ellora, e em Ahmandabad, uma fortaleza e uma cópia do Taj Mahal.
Que maravilha era Wardha! Ainda bem que fui. Fiquei hospedado no próprio Sevagram Ashram, fundado por Gandhi para promover seus 11 princípios de vida. Simples, as pessoas vivem até hoje como ele! Com casas de pau a pique, é simplório, mas é lindo! Inteiramente preservado, e com todos os utensílios usados por Gandhi, Kasturba, e Mirabeh – a famosa e fiel discípula. Lá, comi uma das mais gostosas comidas, e fiquei amigo de uma equipe grande de engenheiros agrônomos que fazia pesquisas com orgânicos no local (também sou formado em engenharia). Há também um museu muito simples, e muitos livros de Gandhi e Vinoba, seu seguidor.
Em seguida, tive apenas dois dias supermovimentados em Ahmedabad! Conheci, na cidade, o Sabarmati Ashram, também fundado por Gandhi. Não há mais quem viva no local, mas ele é super-visitado, e tem uma excelente loja de produtos relacionados a Gandhi. O lugar foi frequentado por todas as lideranças da Índia na primeira metade do século, e já foi visitado por personalidades como a Rainha Elizabeth e Mandela. Foi de lá que partiu a Marcha do Sal (400 quilômetros de caminhada para o litoral). Seu diretor, Tridip Suhrud, me contou orgulhoso que traduziu Paulo Freire para a língua gujarat! Em Ahmedabad, tive a sorte de ir a uma palestra de Rajmohan Gandhi, o mais famoso neto. Ele vive nos EUA, e raramente visita Ahmedabad. Foi uma sorte e tanto estarmos, ao mesmo tempo, na mesma cidade! Na palestra, conheci dezenas de gandhistas e familiares deles.
Porém, a experiência mais marcante em Ahmedabad, dentre as relacionadas a Gandhi, foi a visita à Gujarat Vidyapith, universidade fundada por Gandhi em 1920, que ainda é inspirada em seus ideais. O campus e os banheiros são limpados pelos próprios alunos, divididos em brigadas. A arquitetura é totalmente pensada de forma a estimular o convívio e a sociabilidade. O uniforme é fabricado manualmente, em máquinas de tecer. Tem importantes estudos de energias alternativas (bicicletas ergométricas rudimentares são espalhadas pelo campus, para que os alunos se exercitem e, ao mesmo tempo, gerem energia).
Quando um amigo de Gandhi lhe disse que a universidade não teria alunos, por conta da rigidez, ele respondeu: “se não tiver alunos, ensinaremos os macacos. O que não podemos é abrir mão dos nossos ideais”. Lá, eles dão um curso gratuito de quatro meses sobre não-violência, e me convidaram a estudar nesse curso, sem precisar passar por seleção! Mas, tão cedo, não pretendo ir. Fiz bons amigos nessa universidade. Difícil acreditar que tudo isso, e coisas que contarei depois, aconteceram em apenas dois dias! Enquanto estive lá, soube que o estado está discutindo permitir que as pessoas ou organizações vendam energia para o governo caso ela seja gerada por fontes alternativas. Isso já é adotado em alguns países, e eu já penso nisso há muito tempo para o Brasil. Pensei em elaborar um projeto de lei sobre isso.
Foi então que o destino seguinte passou a ser Porbandar, a pequena cidade onde nasceu o Mahatma. Nesse momento, embora encantado com a viagem, eu estava exausto. Porque não passava mais que dois dias em cada cidade. Antes da viagem, eu achava que iria me emocionar ao chegar na casa onde Gandhi nasceu. Mas logo que avistei a casa, e entrei, e vi o local exato onde ele havia nascido, o que pensei na verdade foi: “que saco, não aguento mais ouvir falar em Gandhi”. O local era marcado com uma suástica, símbolo sagrado para os hindus. Achei muito interessante que este símbolo, associado no Ocidente ao nazismo, estivesse marcando o lugar onde nasceu um defensor de métodos pacíficos de ativismo político.
Naquela noite, eu deitei na cama, e a ficha caiu. “Hoje estive na casa onde nasceu Mahatma Gandhi, inteiramente preservada tal como era. E agi como se estivesse num lugar qualquer”. Levantei da cama no mesmo momento, decidido a fazer algo. Foi então que decidi cortar a barba, e deixar só o bigode, para homenagear o bigodudo Gandhi. No dia seguinte, voltei ao local com o bigode. Considero a foto ali tirada uma síntese da parte “gandhista” da viagem. Ainda visitei a casa onde nasceu Kasturba Gandhi, e o local de nascimento também é marcado com uma suástica. Passei quatro dias na pequena e simpática cidade onde quase ninguém falava inglês.
Voltei a fazer visitas relacionadas a Gandhi apenas semanas depois, em Nova Delhi. O Rajghat, lugar onde o corpo dele foi cremado, para que as cinzas fossem lançadas no Ganges, permanece com uma chama constantemente acesa, e tem intensa visitação. Visitei ainda o Gandhi Peace Foundation, ong de promoção da paz, onde fui muito bem recebido. Também visitei três museus sobre ele. O principal, National Gandhi Museum, tem uma infinidade de utensílios que pertenceram a ele.
No entanto, o auge deveria vir ao final, como planejado. Gandhi foi assassinado em 30 de janeiro de 1948 na Birla House, casa de um importante empresário (Birla), onde ele estava morando porque estava doente. Ele caminhava para fazer sua oração matinal, às 7h, quando levou três tiros. No local, hoje funciona um museu, um memorial e um museu interativo. Antes da doença, Gandhi viveu no Harijan Sevak Sangh, comunidade alternativa que ele criou na capital do país somente para combater a “intocabilidade” – pessoas consideradas intocáveis, algo quase extinto no país.
Meu planejamento era estar no Harijan no dia 29, e na Birla House no dia 30, exatamente a data do assassinato. E como foi difícil! Havia uma cerimônia na Birla House com a presença do primeiro-ministro Manmoham Singh, e vale lembrar que a Índia é, por vezes, vítima de terrorismo, e há sempre uma paranoia com segurança. Para convencê-los a me deixar participar da cerimônia tive que usar de todos os argumentos possíveis, implorar, e rezar muito! Uma boa alma de um indiano me salvou.
No dia 29, visitei o Harijan Sevak Sangh, e fiquei encantado! O lugar ainda funciona segundo os princípios de Gandhi. O centro médico só utiliza medicamentos naturais, medicina ayurvedica. Há uma escola para crianças oriundas das vilas. Os uniformes também são feitos manualmente. Tudo é coletivizado. E eles me trataram como um príncipe.
No dia 30 de janeiro, exatos 65 anos após o assassinato do Mahatma, e dois dias antes de meu retorno ao Brasil, lá estava eu na Birla House. Visitei o quarto onde ele dormia e tinha reuniões, e a casa. Curti o maravilhoso museu interativo. Vi fotos, vídeos, livros, e as pegadas no chão, reproduzindo o caminho que ele fez até a tragédia. No horário da cerimônia, me sentei. Uma hora e meia daquela música de sonoridade única, homenageando o Mahatma.
Chegou o primeiro-ministro, e fez o mesmo gesto que eu fizera três horas antes, diante do local onde Gandhi foi assassinado. O lugar estava inteiramente enfeitado com flores. Foi um desfecho lindo de uma viagem cuja dimensão não cabe nestas palavras. Me emocionei, é claro. Fiz toda a viagem para, ao final, estar ali. E ali eu estava. Tudo tinha dado mais do que certo. Lembrei-me das palavras de Jesus: “preocupe-se somente com o Reino de Deus e sua Justiça, e todas as outras coisas vos serão acrescentadas”.
Pela primeira e única vez na minha vida, orei diretamente a Mahatma Gandhi. Não sei se foi uma coisa boa rezar para um homem que nunca quis ser chamado de santo, mas naquele momento senti a necessidade de fazê-lo. Agradeci-o por ter mudado minha vida, por ter me mostrado a importância de se resistir aos processos de exploração, fazendo-o sem ódio, com amor e paz no coração. Agradeci-o, ainda, por eu ter conhecido seu incomparável país através de seus próprios passos. Agradeci, também, por estar vivendo aquele momento que, repito, não sou capaz de traduzir em palavras. Levantei, e fui embora. Já estava pronto para voltar ao Brasil.
ITEM 4. EDUCAÇÃO, MAIOR DAS BANDEIRAS

Pouco antes de viajar, uma amiga indiana radicada no Rio me disse uma frase que não esqueço. “A Índia não costuma dar o que você procura. Ela costuma dar o que você precisa”. Ela estava certa.
A princípio, eu queria obviamente ver como os indianos tratam seus problemas sociais, mas não tinha a pretensão inicial de verificar especificamente o setor da Educação. Porém, não tenho dúvidas de que as experiências mais enriquecedoras e marcantes de minha passagem pelo país têm, todas, a ver com Educação. Nem sei por que estou escrevendo isso somente agora, no item 4. Foi mais importante que tudo.
No próprio Harijan Sevak Sangh (item 3), tive a doce experiência de ser levado a TODAS as salas de aula da escolinha deles. Em cada uma delas, as lindíssimas criancinhas se levantavam, uniam as mãos, e falavam alto: “Namastê!”. Também no Distrito Federal de Nova Delhi, cidade-satélite de Noida, o jornalista Venkitesh Ramakrishnan, que eu conhecera em Jaipur, me levou para conhecer uma escola que fundara e que mantinha com amigos jornalistas. Para chegar lá, atravessei por sobre esgotos as vielas de uma comunidade pobre. O lugar era muito humilde, mas segundo Venkitesh, muitos que lá estudaram já haviam chegado à universidade pública.
Outra experiência fascinante foram as duas escolas do Aurobindo Ashram, que foi a comunidade onde me hospedei por duas semanas em Nova Delhi. Eles mantém escolas inspiradas na filosofia mística de Shri Aurobindo e The Mother. As salas de aula não têm paredes, apenas murinhos. Os professores atuam como facilitadores, e não como transmissores de conhecimento. Os alunos sentam, invariavelmente, em círculos, e não há rigidez quanto à idade padrão de cada turma. As salas de aula são dispostas em cada aresta de um hexágono, e quem caminha pelos corredores vê e ouve todas as salas. O período é integral, com refeições planejadas em todos os momentos. Meditação e yoga são imprescindíveis. A prática de esportes é constante e obrigatória (joga-se muito futebol, algo raro na Índia!).
Há ainda a visita à universidade Gurajat Vidyapith, fundada por Gandhi há 93 anos, que relatei no item anterior.
A experiência mais marcante ocorreu, no entanto, em um local chamado Bal Ashram. Narro essa experiência na revista Caros Amigos de fevereiro de 2013, nº 191, página 41. Nesse lugar, próximo à estrada entre Jaipur e Nova Delhi, “os sonhos de um homem se transformaram em realidade”, como digo na reportagem. Kailash Satyarthi é um ativista que já retirou mais de 81 mil crianças do trabalho infantil e escravo. Entre prêmios e histórias fascinantes, foi indicado ao Nobel da Paz em 2006. No Bal Ashram, as crianças são ressocializadas.
Meu projeto inicial era, apenas, me encontrar com Kailash. Mas ele me convidou para ir ao local. E por conta de um problema intestinal, que me obrigava a visitar o banheiro várias vezes, fiquei lá quatro dias. Foi, como tenho tantas vezes repetido, a minha experiência mais marcante na Índia. As crianças chegam lá com sérios problemas psicológicos, familiares, de saúde, etc. E recebem muito amor e um trabalho muito bem feito. Não me lembro de uma única que não estivesse sorrindo.
Todos os dias, eles têm uma hora de “aula social”, para entender melhor os problemas do mundo. A prática de esportes também é padrão. E a maioria das aulas é ao ar livre. O contato com a terra, e o estímulo a atividades manuais, são regra. Os funcionários só podem comer quando todas as crianças já tiverem concluído. Durante minha visita, houve dois festivais. As crianças obedeceram a todos os rituais, e no momento da dança, se soltaram de forma incrível. Mais detalhes estão na reportagem.
Logo no primeiro dia, após entrevistar o simpaticíssimo Kailash, conduzido pelo alegre gerente local, Aditya Mishra, dancei com as crianças, comi as balas relativas à data, e sua refeição (totalmente vegetariana, e com alimentos orgânicos). Me hospedei no local, e conversei muito com funcionários e familiares de Kailash. O clima era de paz, de festa, de alegria. Lembro que deitei na cama, cansado (a viagem foi longa), e pensei: “eu não tenho o direito de estar vivendo isso e, depois, continuar sendo a mesma pessoa. Não tenho esse direito!”. Voltei da Índia convencido a fazer algo pela Educação no Brasil, mas ainda não sei o que, nem como.
ITEM 5. ENCONTROS

Não há dúvida de que, em qualquer viagem que mereça a grandeza desse nome, o que há de melhor são os encontros. E o grande barato é que a maioria deles é absolutamente inesperada. Foram tantos e tão intensos os encontros, que há de se lamentar não ver mais tanta gente bacana. Não há como esquecer a pergunta de um amigo, antes da minha viagem: “você vai passar Natal e Ano Novo sozinho?”. A minha resposta terminou sendo, com o tempo, mais verdadeira do que eu imaginava. “Não. Vou passar as próximas semanas ao lado de um sexto da humanidade”.
Na África do Sul, a ativista Pat Adams me levou para vários lugares interessantes. Conheci-a em 2012, quando a entrevistei por e-mail para uma reportagem sobre os impactos da Copa na África do Sul – Pat é a principal referência da StreetNet, imersa nesse debate, e com dois representantes no Rio. Confesso que só descobri que era uma mulher quando ela chegou para me encontrar – até então, eu achava que era homem. E veja só: Pat já me visitou no Brasil, já que aqui esteve uma semana após meu retorno da Índia.
Ainda em Durban, também conheci Ela Gandhi, neta do Mahatma – uma das criaturas mais doces que já conheci. E Paddy Kearney, religioso católico próximo ao falecido e famoso arcebispo Denis Hurley, que lutou contra o apartheid e foi amigo de Don Helder Câmara. A lembrança mais afetuosa que tenho de Paddy é a dele, enquanto me dava uma carona, mostrando orgulhoso o nome da “Rua Che Guevara”, que eles passaram a ter na cidade – com o fim do apartheid, a África do Sul reviu nomes de ruas, retirando nomes de racistas.
Em Johanesburgo, convivi com a alegre e engraçada Manya Gittel, que levou o Teatro do Oprimido ao país. Ela se lembrava com carinho de Augusto Boal e de Geo Britto. E me agradeceu por ter descoberto tantos lugares relacionados a Gandhi na cidade onde ela nascera. Tantas outras pessoas conheci no país.
No estado de Kerala, o anjo foi John Moolakkattu. Cristão, me mostrou várias igrejas, e me convidou para a ceia de Natal com sua família. Na ocasião, seu sogro me perguntou por que eu não era casado aos 36 anos de idade. Respondi, de brincadeira, como se lamentasse: “tenho me perguntado isso todos os dias”. Foi então que ele rebateu: “se não tem esposa, quem cozinha pra você?”. Só então me dei conta do raciocínio machista dele. Não me controlei: “eu mesmo cozinho. Quando me casar, quero cozinhar todos os dias para minha mulher”.
Kerala é um estado com grande presença de cristãos. São Tomé, o discípulo de Jesus, teria migrado para este local após a morte dele. Minha cerimônia de Natal foi em um templo ortodoxo onde o santo teria estabelecido uma de suas primeiras igrejas. Tinha duas cruzes persas do século XI. Mas a cerimônia foi um saco.
Em Mumbai, Usha Thakkar também me recebeu com carinho. E no ônibus entre Pune e Ahmandabad, conheci Govinda Bobade, simpático engenheiro que fez questão de me pagar um jantar delicioso, depois que eu lhe disse que não gostava de comida indiana porque era muito apimentada.
Em Wardha, toda a comunidade local era uma gracinha. Mas conheci uma equipe de engenheiros agrônomos, de quem me tornei amigo. Com Manish Surve, criei relações de amizade ainda mais profundas. Em Ahmedabad foram muitos encontros – incluindo familiares de Gandhi. Mas foi com a feminista premiada Mirai Chatterjee, que me foi apresentada por Pat, que tive as mais interessantes conversas.
No Bal Ashram, me encantei com a simplicidade de Kailash Satyarthi, e dos funcionários Aditya Mishra e Priya Panth (item 4). E em Jaipur, o dono do hotel Santha Bagh, com inglês irretocável e vasta cultura, me ensinou muito sobre a Índia. Foi neste local que conheci Venkitesh Ramakrishnan, também muito culto, fã de Jorge Amado, que depois reencontrei em Nova Delhi. Era jornalista à moda antiga, do tipo que bebe, fuma, é ateu, devora livros, e sabe tudo o que está acontecendo no mundo.
Em Nova Delhi, revi a amiga mineira Michele Cesário, que descobri estar morando lá durante a viagem. Foi delicioso revê-la após sete ou oito anos, conhecer seu filho, comer enfim feijão, e conversar muito. Sri Laxmi Dass me apresentou o Harijan Sevak Sangh com uma paciência e um carinho raros! E o simplório Surendra Kumar, que dirige o Gandhi Peace Foundation, mandou que fizessem um almoço especial para mim – devido à minha complicação intestinal.
Já se criou e se inventou de tudo nesse mundo. Mas o melhor de qualquer lugar foi, é e será sempre as pessoas desse lugar. E uma viagem que não tenha encontros intensos, pessoas que mudam nossos paradigmas, não é digna de ser chamada de viagem.
ITEM 6. ÍNDIA É HISTÓRIA

Tudo na Índia é história. Às vezes, a gente está andando por uma cidade, e nos deparamos de repente com um monumento construído no século XII. Claro, é um povo milenar – talvez o mais antigo do planeta. Se fossem mais desenvolvidos, poderiam explorar o turismo como nenhum outro país. Porque tudo é história, tudo muito interessante. Tão impressionante quanto à beleza do Taj Mahal, por exemplo, e tão assustador quanto o desperdício de dinheiro em um mausoléu (o Taj foi construído para abrigar o corpo de uma das esposas do príncipe Shah Jahan), é a história que ronda o monumento.
Vi diversos templos construídos dentro de cavernas. Construções gigantescas levantadas em diferentes séculos, por diferentes povos. Fortalezas, fortes, monumentos. Com uma riqueza de detalhes impressionante. Hoje temos, na mente, a imagem da Índia como um país pobre. Mas isso só é uma realidade nos últimos 200 anos, após a colonização inglesa. Antes, eles sempre foram ricos. Basta lembrar que os conquistadores portugueses e espanhóis queriam atingir as riquezas “das Índias”.
ITEM 7. VEGETARIANISMO

A Índia deveria ser o paraíso para vegetarianos como eu. Logo que cheguei, me cativou a existência de “Restaurantes não-vegetarianos”. Ou seja, a quantidade de vegetarianos é tão grande (mais de 70%), que a relação dos restaurantes é invertida. São os que usam carne (geralmente frango) que precisam avisar. É muito comum por lá, também, a não digestão de ovos. A maioria deles é lactovegetariana.
Percebi que a Índia não é o paraíso dos vegetarianos logo na minha primeira refeição, repleta de pimenta. A comida é extremamente apimentada, pouco saborosa, pouco variada, e sempre com algum risco de ter sido feita com água pouco confiável. Senti muita saudade da comida brasileira. Emagreci quatro quilos durante a viagem.
ITEM 8. PERRENHES/HIGIENE

Por causa, justamente, da falta de higiene dos indianos, tive meus piores perrenhes. Problemas intestinais me obrigaram a ir ao banheiro a todo momento. Tinha que ficar comendo banana, arroz, iogurte natural, água e sal para passar. Horrível! E é comum no país. Algumas regiões são visivelmente sem saneamento. Me vi, algumas vezes, andando por sobre esgotos abertos.
Certa vez, iria comer na estação de trem, em um lugar que parecia confiável. De repente, vi um rato. Desisti na hora de comer, e apontei para o rato. Eles começaram a rir de mim, como se dissessem: “olha o gringo, com medo de um simples ratinho”. Um indiano demonstrou compaixão pelo rato, dizendo que o animalzinho também estava procurando um lugar quente para ficar (estava muito frio). É que eles têm uma relação muito especial com os animais.
Papel higiênico é artigo raro na Índia. Eles não usam. Fiz uma viagem de cinco horas de barco em que o banheiro era um buraco no chão, sem papel nem água para lavar. Ao final, na rodoviária, para voltar, tive que improvisar no banheiro do restaurante. Ônibus também não tem banheiro.
Outro grande perrenhe é viajar de trem – talvez a maior dificuldade. Comprar a passagem é dificílimo. Entender o processo. Milhares de caras querendo ganhar uma grana em cima de turistas. Na volta de Agra, cidade do Taj Mahal, tive que esperar três horas o trem. Cheguei em Nova Delhi de madrugada. Um ônibus que peguei de Aurangabad a Wardha era feito só de camas! E para comprar qualquer coisa, na Índia, a gente tem que negociar.
ITEM 9. ESTUPRO NA ÍNDIA
Eu estava ainda no início da viagem quando uma estudante foi estuprada violentamente em Nova Delhi, e morreu no hospital. Mais que bárbaro, o caso levantou a discussão no país – a capital é recordista em estupro. Milhares de manifestações tomaram as ruas. Houve até protestos apenas com homens, e bonitas intervenções de rua. A polícia reprimiu as manifestações com violência. Por sorte, conheci as principais lideranças feministas no caminho, e fiz uma matéria elucidativa para o site da Caros Amigos. Vale a pena ler.
http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/politica/2907-estupro-barbaro-ressuscita-pauta-das-mulheres
ITEM 10. SOCIALISMO EM KERALA

O primeiro lugar onde pisei na Índia foi o estado de Kerala, conhecido como o “estado socialista”. Lá, o Partido Comunista é muito forte, e muitas pessoas têm bandeiras vermelhas em casa com a foice e o martelo. Foram os primeiros comunistas, no mundo, a chegar ao poder por vias eleitorais, em 1928. O estado é o menos desigual da Índia – poucos ricos, poucos pobres. Têm os melhores índices de educação, saúde, mortalidade infantil, combate ao analfabetismo, etc. Fui à cidade de Kottayam, a primeira no país a erradicar o analfabetismo, em 1989. Atualmente, o partido não está no poder. Kerala é governado pelo Partido do Congresso, como todos os outros quatro estados onde estive. Mas o Partido Comunista deve voltar ao poder nas próximas eleições.
ITEM 11. YOGA
Só tive noção da dimensão da yoga após minha viagem, e decidi retomar minhas aulas ainda este ano, no Brasil. Trata-se de uma prática maravilhosa, física e espiritualmente. O mundo inteiro deveria ser estimulado à prática, nas escolas ainda. A relação das pessoas com a vida é muito melhor quando praticam yoga. Conheci um yogue mineiro enquanto estava no Aurobindo Ashram. Professor em Belo Horizonte, viaja à Índia todos os anos com a mulher.
ITEM 12. TRANSPORTE

O trânsito é um completo caos, em qualquer cidade. Cheia de carros, tuck tucks, ônibus, motos e pessoas se atropelando. Buzinas são ouvidas sem parar – no país, elas servem para avisar que estamos passando, e não para protestar contra outro veículo. O sistema de trens é antigo, e cobre o país inteiro. Pode-se ir a toda parte de trem, por preços baixos. A cidade de Mumbai, a mais populosa da Índia, é um completo caos automotivo. São Paulo, perto deles, é cidadezinha do interior.
ITEM 13. ÁFRICA DO SUL

Estive em três cidades na África do Sul: Durban, Pietermaritzburg e Johanesburgo. Na segunda, estive apenas para conhecer a estação de trem de onde Gandhi foi atirado, por ser negro e estar viajando na primeira classe, e que teria despertado sua luta por justiça social. Em Durban, cidade bonita, muitas coisas aconteceram. Mas Johanesburgo me deixou uma sensação muito ruim, que prevaleceu. Sensação de insegurança, de que estava sendo observado nas ruas. Impossibilidade de sair de casa sozinho. Também visitei as casas de Nelson Mandela, Winnie Mandela e Desmond Tutu, em Soweto. E o belo estádio que abrigou a final da última Copa. E a prisão onde Gandhi ficou quatro vezes. E duas das casas de Gandhi na cidade. Mas a sensação de insegurança infelizmente prevalece nas minhas lembranças.
ITEM 14. MISTICISMO

O que fascina a maior parte dos viajantes pela Índia é seu aspecto místico. E vivenciar isso era, também, um de meus objetivos. A filosofia hindu, da religiosidade tradicional, é bastante interessante. Estive em inúmeros templos ao longo do país. Em cada lugar, era uma experiência nova, uma arquitetura completamente diferente, tudo muito distinto. E comove perceber como o povo local tem fé e se entrega às suas tradições.
Em Nova Delhi, fiquei em um ashram místico chamado Aurobindo Ashram. No local, tive aulas de yoga, e todos os dias trabalhava uma hora na cozinha – uma regra local. Às 19h, havia uma meditação, frequentemente com música. Há diversas tendências diferentes no país. Sem dúvida, na próxima viagem – já que ficou constatado que terei que voltar – irei priorizar o aspecto místico do Índia.
Como esperado, a ida à Índia foi a viagem da minha vida. E a dimensão dela não está nas fotos, nas narrativas, nem mesmo neste texto. Está dentro de mim, nas sensações que tive, nas lembranças que permanecerão, e nas transformações internas que qualquer viagem produz. Porque uma vida só é Vida, de fato, se há intensas viagens, e uma viagem só é Viagem, de fato, se há real transformação. Lá do outro lado do mundo, na Índia, sei que ficou um pedacinho de mim. E aqui dentro do meu peito, eu acho que ficou a Índia inteira.
(*) Leandro Uchoas é jornalista.
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sábado, 2 de março de 2013

Carta aberta a um jovem militante MES- PSOL


Meu prezado Thiago Aguiar,

Por seu intermédio, tomei conhecimento de um texto de Roberto Robaina, assumindo defesa do MES contra “ataques” que eu teria feito a essa tendência do PSOL, assim como à pré-candidatura da brava Luciana Genro à Presidência da República. O texto é malandro, para dar-lhe definição sucinta. Não contesta a questão central por mim colocada, e usa o subterfúgio de abrir fogo para todos os lados como forma de não se definir séria, e honestamente, sobre o essencial. 
Portanto,  só por respeito à forma respeitosa com que você me enfrenta, sem concessões, nos debates políticos pelo FB, e pelo interesse que tenho em prestigiar jovem geração talentosa, mesmo que não concorde com seus referenciais teóricos, me proponho a responder, ponto-a-ponto.

1-    Nunca pretendi fazer o MES e Luciana de alvos. Pelo contrário, a despeito de divergências eventuais, a tendência sempre contou com minha solidariedade, principalmente quando atacada duramente por alguns dos apoiadores que hoje recebe. Fui eu quem subiu no palco de um congresso estadual do PSOL-RJ para defender uma aliança – aliança de fato, e não apenas recebimento de apoio – com o PV do Rio Grande do Sul. Fui eu quem subiu no palco para defender como legítima a decisão dos companheiros em receber doação da Gerdau, na medida em que havia sido identicamente dada a todos os partidos, e não era produto de nenhum acordo bilateral. Tolice, seria abrir mão. Fui eu também o primeiro, e talvez único, a me comunicar diretamente om Roberto Robaina, quando, em nome do PSOL retirava a candidatura ao Senado numa disputa em que o risco era de ver Paulo Paim superado pela direita mais reacionária. Por que o fiz? Simples. Porque considerei correta a iniciativa, no contexto que os companheiros enfrentavam em cada ocasião. E por ter certeza de que tal movimentações não colocava em risco a integridade ideológica dos que lideravam o movimento. Avaliação que, e a despeito do que é escrito e dito de parte a parte, atualmente, não modifico. É da lógica da luta interna.
2-    O que me move hoje não é o ataque a A ou B. Não aceito que divulgar um debate entre Luciana e Carlos Nelson Coutinho, publicado em portal do núcleo, é “atacar”Luciana.  Mas  me move a proteção contra ataques até caluniosos que, desde 2010, vêm sendo feitos contra o senador Randolfe Rodrigues, de quem, até hoje, só vejo razões para registrar um excelente potencial de parlamentar combativa.. Pelo contrário. Randolfe e Clécio, sim, têm sido alvo de algo inqualificável, em se tratando de companheiros de um partido que se pretenda revolucionário. Me refiro como exemplo à entrevista de Clécio a Fernando Rodrigues, no portal do UOL, em que Clécio falou até em reestatização da Vale.  Mas cujo destaque, para todo o partido, foi uma caluniosa versão de que ali ele defendera doação de bancos a nossas campanhas. Clécio nunca disse isso. E quem viu a íntegra pode constatar, Mas, a mairia dos militantes com que discuti sequer haviam visto essa íntegra.  Está lá no YouTube, ou no portal da UOL para se confirmar sua defesa do financiamento público, e, depois de muita insistência do experiente apresentador quanto à realidade do financiamento privado, a afirmação de que “temos que lutar com as armas acessíveis ao adversário”.  Uma citação, usada fora do contexto, na ocultação de quase uma hora de excelentes respostas a outros temas.
3-    Não vou me rebaixar a responder à calúnia de que “caluniei” o MES no DN, pela autocrítica que fiz – e da qual ganho razões para me arrepender – do uso equivocado de uma parte, uma parte, repito, de uma informação não desmentida no restante, quanto a polêmicas decisões do MES. Não é uma declaração digna de quem respeita a divergência.
4-    Quanto a “posições oscilantes”, dessas Robaina entende, como praticante, embora me tente imputá-las. Inclusive quando falta com a verdade como constataremos no item seguinte. Pergunte a ele, Thiago,  quem escreveu um livro atacando Carlos Nelson Coutinho, com o velho cantochão de “reformismo direitista”, ainda no PT, e que depois me procurou, pedindo interferência para que o mesmo Carlos Nelson Coutinho aceitasse ser o orientador de uma tese que pretendia fazer em doutorado. Quanto à minha assinatura de tese com o MTL no Congresso, é verdade. Mas com uma diferença. Para ter minha assinatura, na condição de independente, os líderes da corrente me visitaram em casa, e a tese foi definida por minha redação final. Houvesse uma APS, ou uma dissidência paulista do Enlace, com expressão militante aqui no Rio, e possivelmente assinaria com um deles. E não renego. Minha raiz teórica é Marx e Lenin. Do trotsquismo, só textos de Daniel Bensaid e Michel Lowy. Moreno, nem pensar.
5-    Reunião de Maceió – Robaina confirmou a realização, ainda no primeiro semestre de 2009 que, bizarramente, afirma não ter tido “caráter decisório”  como a recente reunião realizada na casa de Chico Alencar, divulgada por mim no FB. Pois se houve reunião extra-instâncias com caráter decisório foi a que agregou o MES-MTL- HH e eu (os participantes são assim nomeados na carta de Robaina) em Maceió. E por que decisória? Por ser parte de uma manobra que já visava uma operação concretizada meses depois: a renúncia de HH a uma candidatura cujas pesquisas de época eram unânimes em indica-la com dois dígitos, enquanto o nome de uma certa Marina Silva, ex-ministra de Lula durante 7 anos, não passava de ridícula pontuação. HH não queria se submeter a um “novo sacrifício” de disputa sem expectativa, e tinha como certa uma vitória para o Senado. Eu me coloquei contra a aprovação entusiástica do MES e do MTL – embora Janira Rocha discordasse de Martiniano e Jefferson, e defendesse a candidatura própria - . E meu argumento era claro: Marina, eu conhecia bem. Não só da vida interna do PT, onde sempre esteve nas posições mais conservadoras, quanto no mandato de Senadora, onde eu, deputado federal, a enfrentava com sua “oposição” propositiva a FHC, numa cumplicidade com Jorge Viana, então governador do Acre, e totalmente vendido ao tucano predador.
6-    Nessa reunião já ficou clara a rejeição a algo que Robaina invoca como condicionante para o apoio, mostrando a falácia da sua argumentação. Por pressão minha, HH faz uma ligação telefônica a Marina. Propunha fornecer o vice e participar da discussão de programa. Marina pediu um tempo. Ia se reunir, naquele momento, com a direção do PV.  Pouco depois, deu o retorno: o PV decidira uma estratégia de campanha e de política de alianças onde não existia compatibilidade possível de acordo político com o PSOL. Isto, repito, no primeiro semestre de 2009. Ou seja, peca por vício de origem a afirmação de Robaina quanto a condicionamentos de apoio a Marina–  cuja bajulação ficou mantida, de forma humilhante, até janeiro de 2010 . Foram necessárias duas entrevistas de Marina, uma delas elogiando Henrique Meirelles, para se concluir que a farsa não podia mais caminhar. Uma farsa que tinha, a partir do MTL, como causa, uma guinada à direita, hoje concretizada. Mas no que diz respeito ao MES, a uma operação casada pela qual a legenda via o caminho para a tomada da hegemonia do partido: Luciana, eleita deputada federal com ampla votação, e HH, senadora, se  juntando e compondo maioria de prestígio social incontestável. Operação digna de uma “esquerda de resultados”, como bem classificou um outro membro do DN, e que todas as demais correntes viam e comentavam abertamente.
7-    Sobre a prévia Martiniano-Plínio, nada a comentar, a não ser ter sido causadora da decisão  de PSTU e PCB lançarem candidatura própria, por não terem mais como aguardar.
8-    Robaina não contesta nenhum desses  pontos, em sua resposta. E, não por acaso. Havia gente demais participando, ou testemunhando,  da manobra. Recorre, então, a o escapismo. Um adjetivo, aqui, um outro tema mais adiante, e desvia o foco da questão central – qual dos fatos por mim relatados ele contesta?
9-    Por que reproduzi uma página do núcleo ZS do PSOL do Rio com a carta de Carlos Nelson Coutinho a Luciana? Atentem sobretudo que a publicação é de 16 de novembro, vários meses após, portanto, à reunião de Alagoas. Vários meses de bajulação sem que a ecocapitalista sequer se dignasse em enviar algum sinal. Pelo contrário. Prevaleciam as seguidas entrevistas de Alfredo Sirkis, explicitando absoluto desprezo pela nossa “démarche”. Reproduzi para comprovar que a campanha violenta, agressiva e por vezes insultuosa, mobilizada pelo dito Bloco de Esquerda, contra Randolfe e Ivan Valente, não procedia se levamos em conta fato semelhante, anteriormente ocorrido. Com uma vantagem para Randolfe: seu mandato era intocável, irrepreensível, e se no caso de Marina houve proposta de aliança subalterna, no caso de Randolfe tratou-se apenas de recebimento de apoios.
10-Por fim bravo Thiago, gostaria imensamente de ver desmentido o envio de uma carta de Robaina, saudando o Forum Marina Silva, realizado em Belo Horizonte, em 2011.
11- Vamos às tergiversações, com respeito à minha omissão quanto ao apoio que a APS, via Ivan Valente e Randolfe, também teriam dado a Marina. Lamento, Thiago, por não ter com a APS, naquela ocasião,  a intimidade de debates internos que Roberto Robaina mostra ter tido. Se eu tivesse sido convidado para alguma reunião com qualquer um que apoiasse Marina, minha posição não teria sido distinta. Minhas posições, então, eram transparentes e públicas como o são agora.
12-Passo à forma grosseira do tratamento das divergências internacionais. E respondo no mesmo tom. Prefiro marcar minha posição nos conflitos por uma lógica: onde está o imperialismo, ou me abstenho ou estou do lado oposto. Há, lamentavelmente, e principalmente nas correntes ligadas à IV Internacional, uma bizarra tendência a aceitar o conceito de “guerra humanitária” e a intervenção dos bombardeios da OTAN contra populações civis, em nome do combate aos ditadores. Eu fico contra essa posição, com oposições internas que negam intervenção estrangeira, defendida por um dirigente importante do DN – não era do MES - que não hesitou em qualificar como justificadas as bombas sobre a população civil de Tripoli. Fico por aqui, por mais não merecerem.
13- Concluindo, prezado Thiago, registro meu orgulho com o desempenho de nossas bancadas federais, na Câmara e no Senado, pela combatividade incessante e o compromisso com a luta dos trabalhadores contra o grande capital. Ivan, Chico,Jean e Randolfe, qualquer um desses me representaria plenamente num debate de disputa com a direita pela Presidência da República. E Luta e Debate que Seguem!! Pois o PSOL  não tem porque não ser transparente em suas discussões. 
                                                              Saudações fraternas,

                                                                                        Milton Temer