Uma chance para corrigir os erros
Juliano Medeiros*
Os
eventos deste ano no norte da África e no Oriente Médio tiveram imenso
impacto sobre a esquerda mundial. Em todas as correntes do pensamento
crítico multiplicaram-se variadas interpretações acerca da chamada
“primavera árabe”. Saudada na Tunísia, Egito, Iêmen, Arábia Saudita e
Barein, tornou-se motivo de controvérsia quando alcançou países como
Líbia, Síria e Argélia, de passado conhecidamente anti-imperialista e
onde os processos adotaram uma dinâmica particularmente complexa, seja
pela adoção de medidas repressivas por parte dos governos locais, seja
pelas contradições destes países perante os interesses de EUA, União
Européia e Israel.
Diante
dos acontecimentos que varreram aquela parte do mundo, a esquerda
dividiu-se. De um lado, agruparam-se aquelas correntes que defendem a
ideia de que as revoltas populares, que no Egito e na Tunísia foram
impulsionadas por poderosos movimentos de massa, logrando derrubar dois
dos mais importantes aliados do imperialismo na região, seriam parte de
uma mesma onda revolucionária cujos desdobramentos envolveriam a Líbia,
Síria e outros países do Oriente Médio e África. Em outras palavras, a
“primavera árabe” seria uma só, e se alimentaria de um sincero desejo
comum de liberdade, democracia e justiça social, alheio aos interesses
das potências estrangeiras.
De
outro lado, expressou-se uma posição mais cautelosa, que não via nas
revoltas populares um processo que se encerrava pela simples derrubada
de governos e destacava a necessidade de solidariedade aos setores mais
avançados do movimento de massas contra a transição tutelada pelas
elites através do exército, ao mesmo tempo em que distinguia claramente
os levantes populares que se alastraram pela Tunísia, Egito e outros
países, da guerra civil que teve lugar na Líbia a partir da intervenção
estrangeira, que em última instância, garantiu aos “rebeldes” de
Benghazi o poder de fogo necessário para fazer frente ao regime de
Muammar Kadaffi.
Seguramente,
entre essas correntes encontraremos diferentes matizes, que vão desde a
simpatia velada ao ditador líbio, supostamente justificada por seu
passado terceiro-mundista e seu apoio aos movimentos de libertação,
principalmente na América Latina, até o apoio aberto à intervenção da
Otan, que vitimou centenas de civis em nome da... proteção de civis! Os
mesmos que outorgaram todo o seu apoio aos “rebeldes” que ora negociam
com as potências ocidentais a entrega dos recursos naturais da Líbia –
notadamente o petróleo e a água – e que continuam acreditando na
existência de um suposto – e até agora desconhecido – “setor
anti-imperialista” no interior do Conselho Nacional de Transição,
expressam outra vez sua simpatia
pela possibilidade de uma ação militar estrangeira, desta vez na Síria.
A
recente tentativa de aprovação de sanções contra o país no Conselho de
Segurança da ONU, vetada por Rússia e China, buscava pavimentar o
caminho de uma nova intervenção da Otan. Assim como ocorreu na Líbia, as
potências imperialistas tentam explorar a seu favor as profundas
contradições que enfrentam os setores populares dentro e fora da Síria
diante de um regime marcado pela corrupção e pelo autoritarismo
político. Para isso, contam com poderosos meios de comunicação – CNN,
BBC, Al Jazeera, Reuters, AFP, dentre outros – que trabalham para
confundir a opinião pública internacional, omitindo tanto a violência
promovida por parte da oposição, quanto as iniciativas tomadas no
sentido de viabilizar uma solução política interna
à crise que vive o país.
Portanto,
a estratégia do imperialismo na Síria é a mesma utilizada meses atrás
na Líbia: estimular a dissidência interna, controlar a oposição e
utilizar o justo descontentamento das massas para garantir a queda do
regime e levar ao poder seus aliados. Assim, mais uma vez é necessário
que aqueles que defendem a democracia e a autodeterminação dos povos
manifestem-se contra a manipulação imperialista. Para isso, aqueles que
emprestaram seu apoio à intervenção da Otan e aos “rebeldes” associados
ao imperialismo, devem adotar agora outra posição.
Antes
de tudo, pelas gritantes diferenças que existem entre Líbia e Síria –
ainda que isto não sirva como justificativa para apoiar agressão
imperialista em nenhum dos casos. Essas diferenças se manifestam por
condições muito particulares, que vão desde a existência de uma oposição
progressista na Síria – que rechaça fortemente a intervenção
estrangeira e reconhece o papel independente da política externa do
governo sírio – até a disposição do regime de Bashar al Assad de
implementar reformas econômicas e sociais que permitam uma transição
política negociada.
O
documento divulgado recentemente pelo oposicionista Partido Comunista
Unificado da Síria deixa claras as diferenças daquele país em relação à
Líbia. Diferente da oposição a Kadaffi, composta por ex-integrantes do
regime e por diferentes facções tribais, as manifestações de protesto
que tiveram início em março na Síria contam com setores verdadeiramente
comprometidos com reformas sociais e econômicas democráticas. Além
disso, o governo já apresentou sua disposição para a reforma ou
elaboração de uma nova constituição e a criação de leis a respeito da
democratização da comunicação e da administração pública. Como afirma o
documento da oposição comunista, na Síria “o governo adotou diversas
reformas sociais e
democráticas que incluem a anulação das leis e tribunais de exceção e
respeito às manifestações pacíficas legais”. No mesmo sentido, uma nova
lei eleitoral e outra permitindo o estabelecimento de partidos políticos
também foram adotadas.
Evidentemente,
não se trata de defender o governo de Bashar al Assad, cujo partido, o
Baath, está no poder há mais de quarenta anos. Apesar de seu compromisso
com a causa palestina, sua relativa independência em relação aos
interesses imperialistas na região, seu caráter profundamente laico e
seu apoio ao Hezbollah, o regime sírio padece de problemas que não
poderão ser superados sem uma profunda ruptura com o atual modelo
político e econômico. A implementação dos planos de ajuste econômico, a
corrupção e o autoritarismo político são incompatíveis com a ideia de
uma Síria soberana e independente. Mas não serão o imperialismo, as
facções fundamentalistas e as elites financiadas pelas potências
ocidentais que viabilizarão as
reformas reivindicadas pelos setores populares. Ao contrário, sob a
batuta das forças reacionárias o futuro reserva violência, instabilidade
e total ausência de soberania.
Aqui
reside a diferença fundamental entre Líbia e Síria, para a qual devem
estar atentos os que viram na agressão imperialista da Otan a única
alternativa para a queda de Kadaffi: na Síria a oposição é composta por
um amplo leque de partidos, onde existem grupos conservadores
financiados e armados desde o exterior, mas também, setores claramente
nacionalistas e democráticos, como o próprio Partido Comunista Unificado
ou o Partido Muçulmano, que rechaçam a agressão imperialista e lutam
para garantir melhores condições para a luta política de massas e uma
transição política pacífica. A esses, devemos prestar toda a nossa
solidariedade, denunciando os bandos armados e financiados pelas
potências ocidentais, bem como as pretensões
imperialistas de intervenção militar. Eis uma excelente oportunidade
para corrigir os erros cometidos em relação à Líbia.
Muito bom o texto. A esquerda socialista não pode cair nos engodos do imperialismo... de novo!
ResponderExcluirCamarada,
ResponderExcluirnão sabia que vc tinha blog.Acompanhava seus comentários via twitter e facebook ,que tem espaço limitados.
Agora, por aqui, da para alongar o debate!
saudações