Crédito: Leila Ghanem | |
Leila Ghanem[1]
INTERVENÇÃO DE LEILA GHANEN NO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DOS 90 ANOS DO PCB (Partido Comunista Brasileiro)
Mais uma vez o Oriente Médio (o Mundo
Árabe, em específico), mostra que é capaz de gerar movimentos de
resistência (Líbano, Iraque, Palestina), de transformar as aventuras
coloniais em derrotas militares categóricas e dar início a um ciclo de
revoltas populares (e se trata de um ciclo que foi interrompido pelo
Escudo do Golfo[2]) no Iêmen, Jordânia, Bahrein, Marrocos, ocasionando
uma intervenção militar imperialista na Líbia e as tentativas ainda em
curso na Síria... Desde então estes eventos não são mais um assuntolocal
e seu impacto diz respeito a todos nós...
Faço, aqui, uma distinção na minha
análise entre os casos sírio e líbio, sujeitos a manobras colonialistas
específicas do eixo EUA / França / Escudo do Golfo.
I - O impacto estratégico das revoltas no Oriente Próximo e as tentativas de desestabilizar os estados da região
É claro que estas insurreições se
espalham em escala internacional através da crônica jornalística. Os
efeitos das ressonâncias são propagados nas metrópoles capitalistas até
Wall Street e não é por acaso que dois grandes países (EUA e França)
conduzem suas batalhas eleitorais sob o signo dessas revoltas.
Na ocasião de sua campanha eleitoral,
Obama anunciou seu plano para “estabilizar e modernizar as economias
egípcia e tunisiana”. Também, por ordem de Washington, o Banco Mundial e
o Fundo Monetário Internacional discutirão este projeto na cúpula G-8,
em 26-27 de mai, na França. Obama, ainda, anuncia que os Estados Unidos
estão criando “fundos empresariais para investimentos de empresas no
Egito e Tunísia, como o modelo do que foi sustentado na transição da
Europa Oriental”[3]. O Egito e a Tunísia ainda não superaram a sujeição
às potências ocidentais, representada nos planos de reajustes
estruturais que foram a origem externa das revoltas que estouraram
nestes dois países e que queremos transformar em laboratórios deste
“novo plano econômico neocolonial”[4]. O auxílio concedido a estes
projetos não excedem 1 milhão de dólares e vai apertar ainda mais o
garrote da dívida[5]. Mas, este projeto foi amplamente contestado no
Egito[6], onde se viu várias iniciativas, inclusive uma autorização
nacional feita por um sheik, para coletar localmente este dinheiro. O
povo egípcio sabe agora que seu país foi pilhado de cima a baixo. Um dos
instigadores da revolta estava de acordo a respeito do gás (o que
decorre dos tratados de Camps David) em favor do qual o Egito se obrigou
a vender seu gás a Israel três vezes mais barato do que o preço de
mercado, ou seja, é ele que dá um presente a Israel de 3 bilhões de
dólares por ano[7]. Logo, não apenas poderíamos passar sem a ajuda
americana, mas ainda utilizar o 1,5 bilhão dado a Israel, para
desenvolver uma distribuição energética em um país em que 20% da
população vive sem nenhum acesso à energia. Outros acordos, tais como o
Quiz, concedem a Israel uma quota de 11,4% sobre os investimentos ditos
“pesados”.[8]
Sarkozy conduz sua batalha eleitoral na
França sob o signo destas “revoluções”, empunhando a importância do
papel que ele desempenhou na Líbia e da necessidade, no momento de
crise, do patronato francês (MEDES e o arsenal militar e bancário...)
definir um novo modelo para a saúde pública. Além disso, Paris se tornou
a capital de uma oposição síria marginalizada no interior e corrompida
pelo dinheiro do Qatar.
O paradoxo é que o “Escudo do Golfo”, à
frente do qual se encontram Qatar e Arábia Saudita, age também para
armar a oposição síria e libanesa, para financiar Annahda na Tunísia e a
Irmandade Muçulmana no Egito, mas ao mesmo tempo financiar a campanha
da direita na Europa, sobretudo a de Sarkozy, que utiliza a ira racista
anti-imigração árabe como cavalo de batalha de sua campanha para se
aliar à extrema direita. Isso nos leva a uma outra batalha de classe que
transpassa as terras francesas. A imigração árabe na Europa desempenha
um papel importante nas lutas sociais, assim como na luta anti-colonial
na Palestina (campanha BDS, barcos para romper o cerco à Gaza).
II – O que quer esta coalizão de bandidos (EUA, Israel, Direita Europeia, Arábia Saudita, Qatar)?
Além das razões estratégicas evidentes
de controlar as “torneiras” do petróleo e de separar a China da Eurásia
(assim se mostra na batalha contra a Síria)... Ela tem por propósito,
pura e simplesmente:
1. sufocar, por todos os meios, todas as
formas de revolta, impedindo o processo revolucionário na Tunísia e no
Egito, mantendo estes dois países dentro da submissão entreguista e a
pauperização na “economia de bazar”. Os 20 milhões de egípcios que foram
às ruas são um fato de uma importância histórica inegável, forçosamente
tornando-se exemplo em escala regional e onde quer quea crise do
capitalismo se projete mais duramente.
2. desestabilizar o Egito, que ocupa um
lugar de liderança no Mundo Árabe, mantendo o status quo maldito criado
pelos acordos de Camp David (os quais estão ligados aos acordos de Oslo,
Camps David II, etc...)[9]
3. Atacar a Líbia e a Síria.
4. Isolar o Irã, minando sua base
popular na região (para isso: 1- a revolta xiita do Bahrein foi afogada
em sangue; 2 - a oposição iemenita foi sabotada, depois de ter afastado
Ali Abdalah Saleh, mas ter mantido toda sua família e seu clã no poder; 3
– os fascistas libaneses, aliados de Israel, foram armados contra a
resistência libanesa do Hezbollah, uma vez que os EUA se recusaram a
vender armas ao exército legal libanês, culpado de ter repelido uma
agressão israelense a suas fronteiras. E enfim, incitar e armar uma
resistência islamo-fascista na Síria.
5. Desarmar a resistência libanesa que
mudou o jogo no Oriente Próximo, desafiando um dos mais formidáveis
exércitos do mundo[10] e que constitui uma ameaça real contra o Estado
colonialista de Israel. Esta resistência se tornou o alvo principal da
aliança de bandidos americana-israelense, sobretudo porque ela deu um
incrível exemplo histórico, revivendo os métodos vietcongues que já
fizeram soar o dobre de finados para os ianques na Ásia e, sobretudo,
para romper o muro de medo, apesar da correlação de forças
desfavorável[11], decidindo lutar , ou "para escolher a morrer de pé",
como dizemos no nosso jargão local.
Esta resistência é particularmente
visada, não por seu caráter religioso, mas porque é de natureza
anticolonial. Kissinger havia dito: "Nós não temos medo do Islã
político, mas do Islãcombativo." Em oposição à "Irmandade Muçulmana",
conservadora e pró-ocidental, o Hezbollah não reivindica o poder ou a
aplicação da lei islâmica "Sharia", ele é parte de uma frente composta
por partidos de esquerda, aí incluído o Partido Comunista Libanês, de
partidos políticos anti-imperialistas e todas as confissões em conjunto
(cristã, muçulmana, drusa)... Elecoloca como prioridade a luta contra
Israel e contra o imperialismo, proclama reformas sociais e impede as
tentativas de grilagem de terras no sul do Líbano, mesmo entre seus
aliados.[12]
Não é qualquer coisa vencer o medo de
todo o estratagema do 11 de setembro que visava aterrorizar não apenas
os países da periferia, mas também as metrópoles... e era uma condição
para passar ao estágio do capitalismo predatório, para o retorno ao
colonialismo e a tomada direta de todos os recursos do planeta,
incluindo a vida... Nós, do Oriente Próximo, fomos o primeiro
laboratório deste terror, em todas as escalas militares, econômicas e
políticas. Vimos desembarcar os americanos no Iraque com um arsenal de
armas não-convencionais, e com eles as empresas como Monsanto, Syngenta,
Dow Chemical e outras gigantes do agronegócio alimentar, ou da água,
como a Bechtel[13].
III - Por que esta obstinação
imperialista, apesar da derrota do sistema capitalista (crise,
falências, enfraquecimento de sua força de ataque, movimentos de massas
por todas as partes, inclusive em Wall Street)?
1. As revoltas que assistimos no Oriente
Próximo dão a prova de que o capitalismo atingiu seus limites que
chegou a um grau tal de centralização que fez desaparecer toda margem de
autonomia fora do poder dos monopólios. E nós não podemos voltar atrás,
não podemos desconcentrar o capital. O movimento natural do capital em
direção a uma concentração cada vez maior nos conduziu até aqui onde
estamos. E dentro dessas condições “as soluções que poderiam
perfeitamente funcionar em uma etapa anterior de centralização do
capital – uma vez que o Estado intervinha e que havia setores
importantes da economia que podiam responder às incitações e políticas
do Estado – não existe mais. É por isso que temos essas agências de
rating, que são a voz direta do capital financeiro e já se tornaram o
poder final para decidir a política econômica”.[14]
2. Se é verdadeiro que a insurgência
árabe que surgiu na Tunísia e Egito têm incluído a pobreza, a corrupção e
a falta de liberdade, é verdade que o ódio contra a dominação ocidental
e à ocupação israelense estava presente devido à aliança entre estes
dois regimes aos Estados Unidos. A natureza ditatorial desses regimes é
um resultado direto de seu papel na manutenção dos interesses
imperialistas.
3. Ambas as insurgências têm suas raízes
em um processo de lutas que se acumularam desde o início da feroz
liberalização da economia que remonta à década de 70, segundo imposição
de Bretton Woods (Banco Mundial, FMI, Acordos de Camp David, GATT, OMC) e
que tomou forma com os planos chamados estruturais. Para falar apenas
da última década entre 2003 e 2010, mais de 3400 movimentos de protesto
foram identificados no Egito. Este processo tem sido acompanhado por uma
destruição sistemática das instituições do Estado, da concentração dos
três poderes nas mãos de uma oligarquia submetida aos Estados Unidos e
do estabelecimento de um regime repressivo.
4. O fato de que "estas revoluções não
têm cabeça" ajudou a perturbar os analistas da esquerda europeia e do
ocidente em geral, que não souberam qualificar estas revoluções
populares, as quais não foram obra dos partidos de esquerda[15], mas um
movimento espontâneo dos jovens e das massas populares, e não resultaram
em uma chegada ao poder das forças revolucionárias. [16]
Pois o fato destas revoluções serem
desprovidas de direção ideológica não retira nada do seu caráter
revolucionário, no sentido de que nos lembra o filósofo comunista Alain
Badiou: “Esta ação coletiva, desprovida da autoridade da lei, aquela que
Marx denominou ‘o desvanecimento do Estado’, este triunfo, ilegal por
natureza, da ação popular, chama-se revolução. Sublevar-se, construir o
lugar público do comunismo de movimento, defendendo-o por todos os meios
e inventar as etapas sucessivas da ação, este é o realsentido da
política popular de emancipação. Comunismo quer dizer aqui: criação em
comum do destino coletivo. Resolver sem ajuda do Estado problemas
insolúveis, ou seja, o destino de um acontecimento. É isto que faz com
que um povo, repentinamente, e por tempo indeterminado, exista, ali onde
ele decidiu se reunir”.[17]
No momento atual, este movimento
continua, centenas de sindicatos independentes nasceram, bem como
comitês de bairro, comitês de acompanhamento para julgar os corrompidos,
os traidores..., comissões para discutir a legislação e, sobretudo, uma
assembleia para garantir a continuação da revolução a partir de Midan
Tahir (esta semana foram definidos de maneirapermanente todos os comitês
da Praça Tahir).
A continuidade deste movimento é a única
garantia da continuidade do processo revolucionário e de parar as
manobras imperialistas, e devemos, todos, ser solidários com os
movimentos no Egito e na Tunísia, onde os sindicatos e os partidos
políticos que fizeram Kasbah II decidiram continuar sua mobilização.
- Nós somos militantes comunistas;
devemos garantir uma análise de classe e olhar ao mesmo tempo a tradição
leninista e a dinâmica da história.[18]
IV - Os limites da agressão imperialista
Apesar da agressão imperialista, a correlação de forças não lhe é favorável.
- É verdade que, até o presente momento,
as estratégias postas em prática pelas grandes potências não foram
colocadas em xeque pelos movimentos, mas as posições do imperialismo
dentro da região são muito frágeis. Com a queda das ditaduras abertas
que estavam a seu serviço, eles perderam um aliado poderoso.
- Sobre o plano estratégico, os
imperialistas saíram fragilizados de seu duplo fracasso no Iraque e no
Afeganistão e são incapazes, ao menos num curto prazo, de atacar o
Irã[19]. (O Estado-maior americano não apoiou esta ideia de uma guerra
contra o Irã. As pressões israelenses não tiveram êxito - resposta de
Obama a Netanyahou).
- Além disso, o Irã é uma potência de
porte (não é nem o Iraque e nem o Afeganistão). Ninguém sabe aonde
poderia chegar uma aventura militar no Irã...
- Assistimos a uma concordância de concepções e uma aliança hermética entre o Escudo do Golfo e Israel
- Na Síria, a Rússia e a China colocaram
todo seu peso para parar a arrogância estadunidense que quer ditar sua
lei como fez na ocasião da guerra contra o Iraque, freando o processo de
derrubada do regime [Bashar] Al-Assad e tentando achar uma solução
local.
- Outras manobras de estabilização
consistem em exacerbar a ira sunita-xiita e é aqui que os wahabitas
sauditas e os emires do Qatar atuam plenamente, armando a oposição síria
e corrompendo a oposição do Conselho Nacional Sìrio (CNS, que acaba de
entrar em crise por questões financeiras)[20]. O objetivo é fechar o
cerco ao Irã xiita, para quebrar a aliança entre o Hamas (sunita) e o
Hezbollah (xiita), cuja aliança falhou devido à generalização de uma
guerra confessional dentro do Islã. Esta tentativa foi para tentar
frustrar o Hezbollah que conseguiu criar uma frente unida que envolve
todas as três resistências anti-imperialistas na região: iraquiana,
palestina e libanesas.
- Os modelos desta desestabilização, que se faz no escuro, nos colocam diante dos seguintes cenários:
I – o Paquistão servirá como modelo para o Egito ou a Tunísia;
II – a somalização da Líbia e da Síria
(encontramos hoje na Somália cerca de 45 “governos”... a Líbia está a
caminho desde “modelo”... a Síria poderia segui-lo...)
- No Egito, os serviços secretos
americanos e israelenses não se desarmam, eles são onipresentes para
controlar a situação e preservar o status quo e os acordos assinados. A
Casa Branca havia aberto uma célula permanente cujo intuito era recompor
a instituição militar[21]: Omar Souleiman, Tantawy e os outrora
inimigos da Irmandade Muçulmana. Mas, aqui também, nem os militares, nem
a Irmandade Muçulmana, podem agir abertamente em favor do bloco
Israel-EUA. Por outro lado, os resultados das eleições não são um dado
estático. O que podem os islâmicos dar às massas? Qual é seu programa?
Por isso, o movimento nas ruas continua e as tropas dos partidos
religiosos participam dos movimentos reivindicatórios. Como se disse
antes, o medo havia mudado de lado e os povos ainda estão em alerta.
V - Que ensinamentos gerais podemos tirar das revoltas populares que ecoam pelos países do mundo árabe há mais de um ano?
1. A lição principal e fundamental é que
os povos quebraram o muro do medo. Esta é uma grande transformação
qualitativa. Durante décadas, os povos em questão, sejam os egípcios ou
os tunisianos - mas poderíamos nos referir a muitos outros - concordaram
em viver sob regimes policiais e mesmo de terror, pensando que era
totalmente impossível fazer qualquer coisa. Agora, eles se revoltam.
2. A reversão do processo não é mais
concebível. Não importam quais sejam as manobras externas de
desestabilização política e as forças que emergem à superfície, seja
qual for a importância dos entraves diante das oportunidades para
avançar, houve uma transformação qualitativa enorme, porque não podemos
voltar atrás - pelo menos não facilmente – rumo a regimes de opressão
como os que havia. Revoltas populares continuam e continuarão. Esta é a
lição geral.
3. Um eixo para o movimento
revolucionário que chamamos “a memória das lutas” (ontem, o Hezbollah se
inspirou nos vietcongues, hoje aqueles do Occupy Wall Street se
inspiram em Qassabah [Tunis] e em Midan Tahrir [Cairo]).
Viva a luta dos povos. Que nosso combate
continue para enfrentar o capitalismo que se encontra em crise e mais
fraco do que nunca. Reforcemos a solidariedade internacional e criemos
ligações entre as redes de resistência anti-colonialista
(independentemente de suas ideologias)[22] e os movimentos
anti-imperialistas, bem como de todas as formas de luta contra as
instituições financeiras e a ditadura do mercado.
Viva o comunismo, a única alternativa à barbárie do capitalismo.
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