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Jornalista, por conta de cassação como oficial de Marinha no golpe de 64, sou cria de Vila Isabel, onde vivi até os 23 anos de idade. A vida política partidária começa simultaneamente com a vida jornalística, em 1965. A jornalística, explicitamente. A política, na clandestinidade do PCB. Ex-deputado estadual, me filio ao PT, por onde alcanço mais dois mandatos, já como federal. Com a guinada ideológica imposta ao Partido pelo pragmatismo escolhido como caminho pelo governo Lula, saio e me incorporo aos que fundaram o Partido Socialismo e Liberdade, onde milito atualmente. Três filh@s - Thalia, Tainah e Leonardo - vivo com minha companheira Rosane desde 1988.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Memória e Verdade, um direito. Por Marcelo Cerqueira e Cid Banjamin

No contexto do debate sobre a Comissão da Verdade, seguem dois artigos fundamentais - um, de Marcelo Cerqueira, advogado de presos políticos e constitucionalista, e outro de  Cid Benjamin, jornalista e ex-preso político. Fundamentais.

Sobre o direito à memória e à verdade – Marcello Cerqueira

17/09/2008
O Estado publicou neste Espaço Aberto, dia 4 de setembro de 2007, artigo do senador Jarbas Passarinho, sob o título A memória, a verdade e o destempero, em que contabiliza as vítimas da ação armada de grupos que então se opunham ao regime militar e manifesta sua revolta em face do lançamento, no Palácio do Planalto, do livro Direito à Memória e à Verdade, simples compilação de denúncias de vítimas e de parentes das vítimas da repressão e de seus advogados.
Lembra sua atuação em favor da aprovação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) como líder no Senado do governo do general Figueiredo. Vice-líder do MDB na Câmara dos Deputados, concordei com o arenista senador Passarinho, líder do governo, mas objetivando a ampliação da lei com a aprovação da emenda generosa do saudoso deputado Djalma Marinho, derrotada por escassos quatro votos no Congresso Nacional.
Julga o articulista que o livro “coleta dados para denegrir a honra do Exército�?” Nesse passo (sem querer discutir a expressão preconceituosa “denegrir”), o senador alcança resultado diverso de sua repulsa, já que admite que a instituição Exército, e não seus subúrbios repressivos, foi responsável por prisões, seq�?estros, torturas, mortes e ocultação de cadáveres de opositores ao regime militar.
As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes (artigo 142 da Constituição federal) e por isso não se confundem com atos insanos de militares que desertaram de seus compromissos.
São também organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República. Aí, sim, em 1964 declinaram de seus compromissos constitucionais e destituíram, pela força, o presidente constitucional do Brasil, golpe articulado com os serviços de inteligência dos Estados Unidos da América e já em curso, se necessária, a intervenção armada da Frota do Caribe, apoiada pelo porta-aviões da classe Florestal, na operação conhecida como Brother Sam, conforme revelam, hoje, insuspeitos documentos do Departamento de Estado norte-americano.
O recrudescimento do golpe com o AI-5 – carimbado com uma frase do senador Passarinho que desmerece sua honrada biografia: “Às favas os escrúpulos” – levou um setor da esquerda à aventura da luta armada, um erro político, sem dúvida. Mas, ao fechar os canais elementares de participação política, generalizar a violência contra a população, perseguir cruelmente os que a ela se opunham, a ditadura compeliu os vitimizados a adotar uma ação política de que, na origem, não cogitavam. A ilegitimidade do regime e sua ação violenta é que geraram uma contraviolência equivocada, mas perfeitamente compreensível. A responsabilidade moral e política pela resistência armada é dos que romperam a legalidade democrática, em 1964, e marcharam, de rota batida, para a mais terrível repressão de nossa História desde os capitães-do-mato.
Mais afeito à linguagem castrense do que à forense, engana-se o senador sobre o alcance da expressão “crimes conexos”, que acobertaria os torturadores, delinq�?entes do regime de exceção, supostamente considerados inimputáveis pela Lei de Anistia.
“Crime conexo” ocorre (conexão teleológica) quando o crime é praticado para assegurar a execução de outro, permanecendo ligados pelo liame de causa e efeito, aplicada, no caso, a regra do concurso material (artigo 69, caput, do Código Penal).
Exemplificando: um militante furta um carro e o entrega a um grupo para praticar assalto a estabelecimento bancário. Todos são presos: o crime do que furtou o carro é conexo com o crime dos que assaltaram o banco, mas absolutamente não é conexo com o crime do agente que os torturou. O que estou a dizer é que, do ponto inarredável da doutrina e da lei penal, os torturadores não foram anistiados!
A lei é um texto promulgado num contexto. Quando da promulgação da Lei de Anistia, a questão principal era libertar os presos políticos e promover a volta dos desterrados. Não se cogitava de buscar interpretação da lei que apenasse os torturadores. Não se cogitou, na Alemanha, de fazer Nuremberg com Hitler no poder. É certo que, embora o texto permaneça o mesmo, o contexto naturalmente se transforma e o âmbito do legalmente proibido acompanha as mudanças. Daí os processos que no Chile alcançaram Pinochet e outros e, na Argentina, Videla, Massera e outros, por decisão dos tribunais.
Aqui, o processo foi menos violento se comparado a outros e, aqui, os agentes comprometidos com a tortura e o terrorismo nada sofreram: o oficial comprovadamente responsável pela bomba no Riocentro, por exemplo, foi inocentado por tribunais militares e seguiu sua carreira.
Há de se atentar para a diferença abismal entre crimes políticos praticados por pessoas ou grupos políticos e crimes praticados pelo Estado, responsável este pelo processo civilizador.
No caso, o livro Direito à Memória e à Verdade, mera compilação de testemunhos particulares, é apenas um tímido passo no sentido do esclarecimento dos crimes praticados pelos subúrbios do autoritarismo sob responsabilidade do Estado brasileiro.
O que se espera é que o governo abra seus arquivos secretos para esclarecer os crimes praticados sob o manto do Estado e permita a tantas famílias saber de seus mortos, render-lhes a última homenagem e servir de advertência para que tais atos não venham novamente a manchar nossa já tão sofrida História. É o Brasil o único país do Cone Sul da América que ainda não abriu seus arquivos para a História.
É direito dos vivos saber dos seus mortos. É direito do País não querer que tais fatos se repitam.
A abertura dos arquivos não é um ato de revanche, mas de justiça. E o fiador dela será o Exército que libertou os escravos, fundou a República e lutou contra o fascismo na Itália. É o Exército dos homens de bem, de oficiais honrados como o coronel Jarbas Passarinho.
* Marcello Cerqueira é advogado

Com o aval do Supremo

Por Cid Benjamin*, em 28 de Março de 2012, no jornal O Globo
Cid Benjamin em O Globo: "E, mais uma vez, 28 anos depois do fim da ditadura, ficou demonstrado que os militares ainda têm poder de veto sobre certas questões. Com a aquiescência do Supremo."
O debate sobre a abrangência da Lei da Anistia tem sido marcado por desinformação e por bobagens – ditas inclusive por integrantes do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da interpretação da Lei da Anistia, em abril de 2010. De lá até hoje repete-se à exaustão que a lei aprovada protegia assassinos, torturadores e estupradores de presos políticos – algo que não é verdade.
Vamos aos fatos.
Como resultado da convergência entre a pressão popular pela democracia e o processo de abertura do regime militar, a Lei da Anistia foi votada em meados de 1979.
O projeto aprovado não era o da oposição, nem teve seus votos. O então MDB, a OAB, a ABI e os vários comitês de anistia tinham uma proposta diferente. Como a ditadura contava com maioria no Congresso (em parte por conta das cassações de mandatos), seu projeto acabou aprovado. Mas foi um placar apertado: 206 a 201 votos.
Aqui cai, então, uma primeira mentira. Fica claro que a Lei da Anistia não foi fruto de um acordão entre ditadura e oposição.
Qual a diferença básica entre os projetos de cada lado?
A oposição queria uma anistia ampla, geral e irrestrita. No jargão da época isso significava que não haveria discriminação entre os acusados e condenados por participar de ações armadas contra o regime e os demais presos e perseguidos políticos.
Já o projeto da ditadura excluía os participantes do que ela chamava de “crimes de sangue” – entendidos como ações em que tivesse havido feridos ou mortos. Tendo sido aprovada a proposta dos militares, a anistia não beneficiou certo número de presos ou exilados. Estes foram libertados ou puderam voltar ao país devido à redução de suas penas, o que foi possível pela revisão da Lei de Segurança Nacional.
Posteriormente, a ditadura e seus defensores utilizaram a expressão “crimes conexos aos crimes políticos”, constante do projeto aprovado, para tentar estender a anistia aos integrantes do aparato repressivo.
Ora, qualquer jurista bem-intencionado demonstrará, com facilidade, que esse artifício é um descalabro. Crime conexo é quando alguém comete um crime menor para viabilizar outro, maior. Por exemplo, falsifica documentos para cometer outro tipo de crime. Ou rouba um carro para usar num assalto a banco. A punição é pelo crime “maior”. E o que a Lei da Anistia queria dizer ao lembrar os “crimes conexos” é que eles também estavam abrangidos pelo texto aprovado.
Considerar que torturas, estupros e assassinatos de acusados de delitos políticos seriam “crimes conexos” é uma interpretação de fazer corar qualquer magistrado que se preze.
Mas não se tem notícia de qualquer ministro do Supremo que tenha se envergonhado de aceitá-la.
E há algo ainda mais grave.
Ainda que se aceitasse esta interpretação absurda sobre os “crimes conexos”, fica uma pergunta: torturas e assassinatos não seriam o que os militares chamaram de “crimes de sangue”? Não estariam, portanto, fora da abrangência da anistia, assim como os “crimes de sangue” cometidos por opositores da ditadura estiveram?
Esquecer isso é tão absurdo como reescrever a história de forma mentirosa e afirmar hoje que a consigna “anistia ampla, geral e irrestrita” tinha como objetivo proteger torturadores e assassinos.
Francamente, duvido que os argumentos apresentados acima sejam novidade para o ministro Eros Grau – relator na ação da OAB ajuizada no STF – e seus pares.
O que houve foi, simplesmente, um julgamento político. As questões jurídicas foram deixadas de lado.
E, mais uma vez, 28 anos depois do fim da ditadura, ficou demonstrado que os militares ainda têm poder de veto sobre certas questões.
Com a aquiescência do Supremo.
*Cid Benjamin é jornalista e ex-preso político.

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