Contribuição ao IV Congresso do PSOL
Este é um documento aberto a adendos, que pode e deve ser aperfeiçoado
por quem se identificar com suas linhas gerais. Ele busca contribuir para um
elevado debate político que qualifique, desde as instâncias de base, o processo
do IV Congresso do PSOL. O primeiro passo, redigi-lo, foi dado coletivamente,
sem sectarismos e com o sincero intuito de ajudar nosso partido a se consolidar
como força política de esquerda. O segundo depende de seu interesse e leitura -
com esse mesmo espírito e propósito.
1. A chama da utopia
Toda análise tem uma motivação subjetiva. As
que se colocam como reflexão de militantes e simpatizantes de um partido
político digno do nome, como o PSOL busca ser, devem se inspirar em dois
elementos básicos: a) entender o que é tópico sem perder a dimensão da utopia,
do vir a ser, de uma sociedade diferente, por igualitária, justa e radicalmente
democrática – socialista, enfim – que aspiramos, negada cotidianamente pela distopia
dominante; b) diferenciar, na ação política, os objetivos estratégicos dos
movimentos táticos que ela exige, dialogando com a realidade e com ela fazendo
as mediações necessárias, dialeticamente, sempre lembrando que os meios devem conter ao menos sinais dos
fins, sob pena de desvirtuamento. E que esses fins, por mais grandiosos que
sejam, não se viabilizam por mera insistência proclamatória ou baluartista.
Nosso tempo pessoal não tem o ritmo do
tempo histórico que nos ultrapassa: estamos, de certa maneira, ‘condenados’ a
lutar por um ‘vir a ser’ que não é, e possivelmente não será em nossa existência - o mundo justo que não veremos. Mas
“plantar árvores sob cuja sombra não descansaremos” (Rubem Alves) não deve nos
desanimar. São os esforços de mulheres e homens lutadores que fazem a roda da
História girar. Ela não é acelerada por uma natural e jovial impaciência, nem
pela às vezes saudável intransigência, que, ainda que emuladoras em
determinadas situações, não servem como argumentos teóricos.
Hoje mais que ontem, entretanto, a utopia é um
imperativo categórico, pois “alimenta de
horizontes” não apenas os sonhos, mas as preocupações concretas com a fome
e a miséria de milhões, jogados no desrespeito à sua dignidade, e o esgotamento
dos ecossistemas, que ameaçam a continuidade da vida na Terra: acidificação dos
oceanos, redução da biodiversidade, contaminação dos lençóis freáticos,
aquecimento global e outros fenômenos nada naturais.
Do mesmo modo, a teoria, a reflexão crítica, é
uma exigência de toda prática, inspirada pela utopia, que pretenda ter alguma
incidência na realidade. Mesmo, ou talvez ainda mais, na situação adversa, de
mera resistência, em que nos encontramos agora, na quadra da hegemonia
capitalista mundial (malgrado suas crises).
É certo que não existe o apregoado ‘fim da
História’, com o triunfo do liberalismo e de caminhos supostamente abertos para
a concretização de uma sociedade de plena realização dos indivíduos, onde as
classes sociais não contam mais. Mas temos que considerar que não estamos em um
período de narrativas épicas, de insurreições populares que, em acelerados ‘10
dias’, abalam o mundo e nossas emoções com tomadas de palácios da aristocracia
ou da burguesia.
O século XXI, ao entrar na segunda década,
traz novos cenários, mais complexos e controlados pelas forças conservadoras
dominantes, mas não menos dinâmicos. Em carta a Contardo Calligaris, crítica a
um artigo seu publicado na Folha de São Paulo de 14/2/2013 (“Saudade de ideias
perigosas”), o advogado João Telésforo faz uma observação muito pertinente: “a hegemonia de uma grande narrativa, a do
capitalismo e de seu aparato institucional, é colossal. Discute-se apenas sobre
quanto e como regulá-lo, bem como outras questões importantes, mas não a
radical transformação de suas estruturas. O discurso que celebra o fim dos
grandes ideais, das ideias abrangentes de compreensão da sociedade e de sua
transformação, acaba por servir a que não sejam discutidas nem questionadas as
estruturas, suas forças dominantes e grandes mecanismos”. João Telésforo
lembra que este discurso dominante estimula as pessoas “a tomarem sua
ignorância como um conhecimento perfeito” e... despolitizado: “esse conhecimento sobre o caráter
fragmentário do mundo, da sociedade e da política – o que é uma verdade, porém
relativa e parcial – tem tornado muita gente insensível à necessidade de fazer
articulações, pensar o todo e articular as transformações em projetos comuns”.
Mas o
bloqueio das elites, com seu arsenal de ‘argumentos’ sobre a modernidade e o ‘anacronismo
da luta de classes’, além do ‘gás paralisante’ do individualismo e da
existência exclusivamente privada (esta é a ‘grande narrativa’ da distopia: ‘não
há alternativas’), é fustigado por movimentos fervilhantes, em muitos países do
mundo. E também no nosso, tanto nos grandes centros quanto no Brasil profundo.
Isso não nos dispensa de ir além de enunciados
genéricos ou das consignas apropriadas para panfletos e microblogs. É tempo de
‘trocar de roupa andando’: desenvolver a militância política e, ao mesmo tempo,
estudar. Fazer, coletivamente, uma
análise mais refinada da realidade do cenário mundial e nacional, na
perspectiva da ‘classe’ – outro termo carregado de significâncias comoventes
mas também simplificador, quando mascara a diversidade dos segmentos do mundo
do Trabalho e seus interesses multifacetados, quase sempre submetidos à
ideologia triunfante do Capital.
Reconheçamos que o PSOL ainda não consolidou uma formulação teórica e
uma ação política coesa que aborde em profundidade os grandes temas nacionais. No importante apoio a lutas pontuais e corporativas dos ‘de baixo’,
nossa atuação pública pauta-se mais como contraponto à vitoriosa orientação
social-liberal e neodesenvolvimentista do
lulopetismo. Não temos conseguido nos firmar plenamente como polo
aglutinador de uma nova vertente de esquerda. A missão histórica do Partido
Socialismo e Liberdade é bem mais ampla do que ser a ‘costela crítica’ do PT.
2. A crise é também do socialismo
Um desafio se coloca para nós: a ressignificação
do socialismo. Quase todos os partidos políticos brasileiros estão adaptados ao
sistema e são defensores do Capital como único dínamo das relações econômicas –
ainda que pelo menos oito dos 31 constituídos traga o socialismo em seu nome ou
programa.
O socialismo que somos chamados a
reinventar não nos coloca como ‘passadistas’ ou retrógrados, opositores do
desenvolvimento. Sabemos que não há socialismo sem desenvolvimento das forças
produtivas, da tecnologia, das forças do progresso. Mas é urgente qualificar o tipo de desenvolvimento – não apenas
econômico, mas também de justiça social, democracia política, equilíbrio
ambiental e oportunidade cultural, centrado no respeito aos ritmos e limites da
natureza e comprometido com a superação das desigualdades sociais – que
defendemos. Entender as complexas relações entre desenvolvimento
capitalista das forças produtivas, consciência de classe e projeto socialista é
imperativo constitutivo do próprio PSOL, que não temos conseguido elaborar. Sem
isso não compreenderemos o Brasil do passado escravocrata e dos monopólios
atuais, nem conseguiremos contribuir para sua transformação.
Não há mais paradigmas de sociedades
socialistas hoje. É preciso aposentar os dogmas e colocar os mitos dos
grandes revolucionários e das organizações políticas do século XX no seu
simples (mas não pouco importante) lugar de memória emuladora na nossa atuação
contemporânea: bons companheiros de viagens que não servem como ‘guias
geniais’, ‘grandes timoneiros’, ‘faróis luminosos do porvir’. É verdade que não estamos começando do zero. A história nos traz
ensinamentos e parâmetros que não podem ser descartados, sob o risco de repetirmos
erros do passado. Lênin, que segue útil (e datado,
como todo ser humano), insistia em criticar o que chamava de “comunismo puro, isto é, abstrato, incapaz de
ações políticas práticas, de massas, que devia levar em consideração as
divergências entre os dominantes”. Denunciava como “charlatão quem pretendesse inventar para os operários uma fórmula que,
antecipadamente, apresentasse soluções adequadas para todas as circunstâncias
da vida” (“Esquerdismo, doença infantil do comunismo” – 1920).
Não há modelos. A China, que compra matérias
primas do Brasil a preços 15 vezes menores que as bugigangas manufaturadas que
nos vende, é potência econômica que fascina os gerentes do Banco Mundial com
seu capitalismo de Estado, sua centralização, seu monolitismo político e sua
exploração de mais valia de trabalhadores. Não sem reação: aquela ‘República
Popular’ enfrentou mais de mil greves operárias nos últimos 2 anos.
(Uma observação lateral, mas de central
importância: é sabido que a China compete com os EUA para ocupar o lugar mais
alto no pódium da poluição. Entretanto, é notável que em 2012 a sua geração
eólica tenha ultrapassado a nuclear e já esteja ocupando o terceiro lugar como
matriz energética, atrás do carvão e da hidroeletricidade. O planejamento
chinês objetiva avançar 50% no aproveitamento do vento nos próximos dois anos.
O ano em que os EUA mais investiram em energia eólica foi também 2012. Já o
Brasil, apesar do seu potencial, ainda engatinha nessa e em outras alternativas
energéticas)
Não há mais modelos. Cuba, da heroica e
cinquentenária revolução, implementa sua reestruturação econômica, com novas leis
e regulamentos que estimulam os pequenos negócios privados e os lucros. A meta
é de, em cinco anos, ter metade de sua economia na esfera privada e não
estatal. O programa de descentralização possibilita aos governos provinciais e
locais gastar seus orçamentos a partir da receita fiscal recolhida na base,
reduzindo os custos do governo central, que cuidará quase que exclusivamente de
educação, saúde e defesa. Todas essas reformas se dão sob a consigna de
“aprofundar o socialismo, para alcançar uma sociedade próspera e sustentável,
talvez menos igualitária porém mais justa”, como pregou Raul Castro, desafiando
nossa lógica costumeira. Fidel, já no ano 2000, ainda à frente do governo,
cunhou frase que é sempre lembrada em Cuba: “Revolução é sentido do
momento histórico, é mudar tudo o que deve ser mudado”.
Não há modelos mas há experiências novidadeiras
e interessantes em nuestra América,
notadamente na Bolívia, Venezuela e Equador. Ali se verificam avanços graças à
combinação de mobilização popular com ocupação de espaços institucionais e
reformas constitucionais plebiscitárias. O genericamente chamado ‘processo
bolivariano’, muito virtuoso ao abrir novos horizontes para as esquerdas
latino-americanas, não está imune a equívocos, retrocessos e personalismos.
Rafael Correa, vitorioso com ampla margem no Equador em importante reeleição, foi
questionado por forças políticas à esquerda, como as lideradas por seu
ex-Ministro Alberto Acosta, respeitável intelectual militante. Acosta disputou
com Correa a presidência e colocou pontos importantes: “Os princípios fundamentais da Revolução Cidadã eram participação
popular, consulta aos povos indígenas, economia social e solidária, direitos da
natureza. Não questionamos o aumento dos gastos sociais, e sim sua efetividade.
Correa aumentou os gastos com a saúde, mas o saneamento básico não melhorou. Há
mais investimentos em educação, mas não há educação de qualidade. Ele
aprofundou o extrativismo, entregou concessões a megamineradoras. Intensificou
a monocultura petrolífera. (...) A não diversificação produtiva é um grande
fracasso. O petróleo acaba. Nosso grupo pensa que o socialismo é um processo
democrático sem fim. Sem democracia não há socialismo”
Momento crítico, nebuloso, difícil,
contra-hegemônico. Mas também promissor para as esquerdas, no Brasil e no
mundo, apesar de tudo: algo se move. O pulso ainda pulsa, e é para que nos
indaguemos sobre alguns ‘valores’ inquestionáveis de um século atrás, como
ditadura do proletariado e partido único. A cabeça ainda pensa, e é para
que discutamos, como Marx bem o fez, as mutações do capitalismo, inclusive o
papel do mercado no mundo contemporâneo – que, ao invés de estar a serviço da
circulação e justa distribuição dos bens produzidos, sujeita as pessoas com seu
‘messianismo’ e sua mão de ferro. Terry Eagleton, em “Marx estava certo” (Nova Fronteira, 2012, p. 23), destaca que “Trotski considerava o mercado necessário ao
controle da adequação e da racionalidade do planejamento”. No contexto da
sociedade rudimentar, de forte base agrária de sua época, o líder
revolucionário lembrava que “a existência
de contabilidade econômica é impensável sem relações de mercado”. Nosso
crânio é arredondado para que as ideias possam circular. Enquanto não há
massa crítica e organizada para a socialização dos grandes meios de produção,
que conquistemos, ao menos, a socialização dos meios de governar. Esta,
efetivada, já resultará em situações de confronto com os interesses do grande
Capital e em redução da exploração econômica.
Como reiterava nosso saudoso e admirável
companheiro Carlos Nelson Coutinho, vivemos tempos de ‘reformismo
revolucionário’, de flexibilidade tática que não comprometa a firmeza
estratégica, de luta por reformas concretas e horizontalização de direitos
civis, compreensíveis para as maiorias marginalizadas. Reformas e direitos que,
sendo realizadas e garantidos, questionam o próprio sistema, estruturalmente
reacionário e regressista.
3. Das primaveras aos outonos
Caminhantes no deserto, saudamos os oásis que
representaram a chamada ‘Primavera Árabe’. Mas esses processos, dinâmicos e
contraditórios, têm produzido, em muitos casos, o retorno de governos
autoritários e até de corte fundamentalista, que têm que enfrentar seguidos
protestos populares. Os interesses do imperialismo também estão ali inseridos,
sempre atentos ao que melhor assegura os ganhos do grande capital
internacional. E reticentes em apoiar, aqui e ali, determinadas forças
rebeldes, com medo do
seu potencial popular. Situações contraditórias em
que regimes autoritários locais, de ditadores excêntricos, sofrem crescente
oposição, também de segmentos apoiados por forças imperialistas que desejam
retomar o controle pleno sobre regiões inteiras ricas em petróleo e com povo na
miséria.
A própria nomenclatura ocidental, cunhando
como ‘avanço civilizatório’ e ‘democracia’ o que atende às suas demandas
econômicas, é fator de uma nova dominação. De qualquer maneira, a cena está
aberta, inclusive para que as ‘primaveras’ das grandes manifestações populares,
reprimidas ou domesticadas, caminhem para um outono de desencanto. Com diz
Achcar, “o povo aprendeu a ‘querer’ sair
às ruas”.
Os movimentos de “Ocupa”, que causaram surpresa e aumentaram nosso ânimo em 2011 e
parte de 2012, perdem alguma força, talvez em função de sua própria
característica de se definir como ‘levante dos contra’, do ‘anti’, sem
perspectiva de clara direção política e projeto de poder. Mas nem por isso
deixam de ser uma novidade interessante, um ‘sinal dos tempos’, uma reação ao
comodismo consumista e ao egoísmo social induzido por poderosas máquinas de
produção do imaginário coletivo nos parâmetros do hiperindividualismo e do
‘self made man’.
Olgária Matos, professora de filosofia da USP,
em artigo intitulado ‘As rebeliões do efêmero’ (OESP, 25/12/2011), analisa: “as mobilizações contemporâneas têm
seguidores que se reúnem em comunidades virtuais com sua solidariedade
pós-moderna, sem valores comuns admirados e compartilhados por todos. As
manifestações públicas e ocasionais contemporâneas se constituem no âmbito de
um vazio ideológico e no quadro do anti-intelectualismo do mundo moderno. Com
reivindicações particulares voltadas para si mesmas, esses movimentos não se
vinculam uns aos outros, resultando em particularismo”.
Quase como contraponto ao que poderia parecer
uma desvalorização desses movimentos espontâneos dos ‘99% contra os 1%’, Saskia
Sassen, socióloga da Universidade de Colúmbia, traz outras considerações,
igualmente relevantes (OESP, 25/12/2011): “ocupar
é um processo que reelabora, mesmo temporariamente, a frequentemente
antidemocrática lógica do poder incrustada no território. E com frequência
também redefine o papel dos cidadãos, na maior parte debilitados e fatigados
depois de décadas de injustiças e desigualdades crescentes. (...) A cidade
surge como um espaço em que os impotentes podem fazer história; não é o único
espaço, mas é um espaço crucial. Seja no Egito, nos Estados Unidos ou qualquer
outro lugar, é importante que o objetivo dos ocupantes não seja o de arrebatar
o poder. Inversamente, eles estiveram e estão engajados em trabalhar para a
cidadania, expor as falhas e os erros da política e da sociedade. (...) O fato
de as pessoas se tornarem presentes e visíveis umas para as outras pode alterar
a natureza da sua impotência. Com base em certas condições, a impotência pode
conter a possibilidade de criar o político, o cívico ou a história”.
Uma boa
questão: em que medida a própria rejeição à democracia representativa e seus
instrumentos está abrindo a possibilidade de se gestar novas formas de governar?
Onde estão sendo buscados/construídos “quem nos represente”, já que quase todos
“não nos representam”?
A velha receita da superação da crise
capitalista – via precarização de direitos, arrocho salarial e demissões – tem
incendiado a Europa. As manifestações massivas têm caráter reativo, de
sobrevivência. A privatização do sistema de saúde coloca em marcha, na defesa
da saúde pública (que ‘não deve ser vendida, mas defendida’), a chamada ‘onda
branca’ na Espanha. Essa mobilização é protesto que se soma à intensa atuação
dos jovens do M-15. Eles amargam o maior desemprego da história ibérica nas
últimas décadas, mas isso não se traduziu nas urnas: o PP conservador de Rajoy,
já imerso em ondas de corrupção, fez maioria e indicou o Primeiro-Ministro. O
povo grego continua sua admirável e incansável luta, mas as medidas recessivas
e espoliativas preconizadas pelo Banco Central Europeu para a Zona do Euro têm
sido implementadas, a ferro e fogo. Por outro lado, não podemos fechar os olhos
à ascensão fascista, especialmente expressiva na
Grécia.
O Movimento Cinco Estrelas, de Beppe Grillo,
na Itália, expressão da antipolítica, desarrumou tudo. Disputando eleições sem
aderir aos seus procedimentos tradicionais, recusando até debates televisivos,
recebeu forte votação dos que, como nós, repudiam o sistema. Mas seu
desdobramento, inclusive nos espaços parlamentares que conquistou, ainda é uma
incógnita e já revela muitas contradições.
A crise é tão grande e generalizada que chegou
ao Vaticano, com o primeiro Papa renunciante em quase seis séculos. Seu gesto,
denunciando a ‘hipocrisia religiosa’ e a ‘debilidade moral’, revela a profunda
degradação das estruturas do poder eclesiástico, que interage com os poderes
seculares. Segundo o teólogo Leonardo Boff (Brasil de Fato, 20/2/2013), “a instituição mais velha do Ocidente
incorporou privilégios, hábitos, costumes políticos palacianos e principescos
que praticamente impediram ou distorceram todas as tentativas de reforma”.
Os mares estão agitados até para a ‘barca de Pedro’, com seu novo timoneiro
gerando, para muitos, expectativas de mudança.
Na dialética da Modernidade, mais do que
nunca, vivemos uma era de incertezas. Reconhecê-las, inclusive no âmbito das
esquerdas, é tão importante quanto não ficar paralisado por elas.
4. A cara do Brasil
Numa perspectiva progressista, governos devem ser analisados não
principalmente por comparação com os anteriores, mas pelo programa que os
elegeram e sobretudo pelas expectativas que geraram. O decênio petista conseguiu rebaixá-las, consolidando o senso comum do
‘avanço possível’. Esvaziou a crítica, produzindo uma espécie de silêncio
cooptado de grande parte da intelectualidade. Na prática, produziu resultados
bem aquém da republicana ‘nova gramática do poder’ proclamada no fim de 2002 –
também por muitos de nós hoje no PSOL.
A avaliação positiva do governo Dilma segue,
de forma crescente, o que já se verificava com Lula. É inegável que há uma
situação de ‘satisfação conformada’
com o governo do Brasil. Para além das personalidades dos chefes de governo,
que também contam e, no caso, são radicalmente distintas e, de alguma maneira,
complementares, há outros fatores que contribuem para esta ampla aceitação. Não
é irrelevante a estatística que aponta uma diferença de 53 vezes nos ganhos dos
10% mais ricos em relação aos 10% mais pobres, em 2002, e que em 2010 cai para
39 vezes.
Ressalvas importantes: seguindo com esse
critério da distribuição da renda pessoal do trabalho, o 1% mais rico, por
outro lado, passou a viver ainda mais nababescamente, em ‘outro planeta’, em
relação aos 99% da população. 50% do(a)s brasileiro(a)s continuam à margem dos direitos
previdenciários. E metade da renda da impropriamente chamada ‘nova classe
média’ (ou, mais inadequadamente ainda, ‘classe C’) é gasta com educação e
saúde, o que revela que essas políticas universais e efetivamente distributivas
não prosperaram como deviam.
A partir de uma situação internacional
favorável, que já se desvanece, veio um certo crescimento econômico,
consolidou-se a democracia política (apesar de seus crescentes limites) e o
controle da inflação. Tudo lastreado no incremento das possibilidades dos
gastos populares (aumento real do salário mínimo em quase 70%, crédito fácil),
gerando ampliação do mercado interno da população de renda média e baixa,
também alimentado pela rede de proteção social das políticas compensatórias que
ampara 13 milhões de famílias (e que incide, timidamente, na diminuição da
desigualdade). A recente redução dos juros e do custo da energia, e
investimentos do governo federal, na linha do Estado indutor, somam-se a esse
‘ambiente favorável’.
Vale ressaltar o que a propaganda oficial
esconde: estudo do economista Reinaldo Gonçalves (“Brasil negativado, Brasil invertebrado: legado de dois governos do PT”)
mostra que no cotejamento com outros países ‘emergentes’ não estamos nos
destacando, mantendo a 70º posição no IDH e nossa localização entre os cinco
mais desiguais do mundo e entre os quatro mais desiguais da América Latina.
Nosso PIB tem crescimento médio de 4,7% na totalidade do período
republicano, acima dos 4% da era Lula (FHC, média de 2,3%) e dos 1,8%, até
aqui, de Dilma. “A taxa de crescimento da economia brasileira, na última
década, foi menor do que a taxa média mundial, e a taxa de investimento, de
18,8%, ficou abaixo da taxa média mundial, de 23,9%”, afirma Gonçalves. E
abaixo também da média da maioria dos países vizinhos, da América do Sul. A obsessiva comparação Lula/Dilma com FHC,
obviamente favorável aos primeiros, encobre outros critérios de análise, mais
abrangentes para uma perspectiva de compreensão do presente e de projeção do
nosso futuro. Por eles, num hipotético ranking de 30 presidentes da República
do Brasil quanto ao ‘desenvolvimento econômico’ em seu governo, Lula ocupa a
19ª posição, Dilma a 24ª e FHC a 27ª (Observação: o dado relativo ao governo
Dilma deriva de estimativa e projeções do FMI para 2012, 2013 e 2014)
Social-liberalismo, modelo liberal periférico,
neopopulismo, fordismo tardio, reformismo fraco, neodesenvolvimentismo,
continuísmo sem continuidade: os especialistas multiplicam as caracterizações
da década Lula/Dilma. O que nos parece claro é o revigoramento do Estado como
controlador e viabilizador de recursos para investimento. Sobretudo pela
política de fomento de grandes projetos pelo BNDES (esvaziando a autonomia de
estados e municípios), o alinhamento do governo federal com as elites
empresariais – empresas de Eike Batista, Friboi e empreiteiras são as maiores
tomadoras de empréstimos públicos – e o
corporativismo das centrais sindicais cooptadas. Tudo resulta na diminuição dos
espaços para oposições alternativas ao sistema (a oposição conservadora ficou
sem discurso). Constituiu-se um novo Centrão político, adesista, fisiológico,
confirmado por eleições bienais formais e banais, financiadas pelos grandes
grupos privados.
A hegemonia do PT, com a abdicação de seu
programa originário, produziu uma ampla coalizão governista, com notórios
adversários agora felizes na base do governo. Os governistas Collor e Maluf, e
a quase totalidade do grande empresariado nacional, são exemplos candentes
deste transformismo petista. O fenômeno desse poder e dessa atratividade,
que deixa a oposição conservadora sem discurso, é explicado por André Singer
em seu “Os sentidos do lulismo”
(Companhia das Letras, 2012): “O lulismo
é o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração de classe, o
subproletrariado, por meio do programa cujos pontos principais foram delineados
entre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo onde ela é mais excruciante
tanto social quanto regionalmente, por meio da ativação do mercado interno,
melhorando o padrão de consumo da metade mais pobre da sociedade, que se
concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses do capital.
(...) Destituída da possibilidade de agir por meios próprios, a massa se
identifica com aquele que, desde o alto, aciona as alavancas do Estado para
beneficiá-la” (p.15) (...) É mister, portanto, reconhecer que o conflito de
classes está condicionado no Brasil pela existência de uma vasta fração de
classe que luta por aceder ao mundo do trabalho formal em regime capitalista,
com todos os defeitos que ele possui, tendo estado historicamente dele excluída”
(p. 44).
Mas o ex-secretário de imprensa de Lula, ao
valorizar esse ‘capitalismo popular’, com seu ‘reformismo lento e
desmobilizador, mas reformismo’, tem honestidade intelectual suficiente para
lembrar que “a luta ideológica parece
recuar para um estágio anterior ao conflito capital/trabalho” e para fazer
um alerta sobre os limites desse processo, que considera “um movimento vagaroso diante da abissal desigualdade brasileira,
mantendo-se um largo estoque de iniquidade para as décadas seguintes, e se
realiza sem mobilização e organização desde baixo, o que pode comprometê-lo
numa situação de crise” (p. 46).
Estão aí os efeitos perversos da governabilidade
conservadora: dispersão da esquerda, movimentos sociais debilitados, certa
paralisia ou cooptação de importantes ferramentas de contraponto ao Sistema nos
anos 80 e 90 (PT, CUT, UNE, ABGLT e outras). O pequeno aumento do salário médio real na última década, de 11%, e a
redução da geração de empregos, são ‘contrabalançados’ pelas negociações
trabalhistas exitosas do ano passado, quando 95% dos 704 acordos possibilitaram
ganhos superiores à inflação, segundo o Dieese.
Enquanto isso o andar de cima segue tendo seus
próprios mecanismos de representação: a mídia grande privada, os financiamentos
das megaempresas, a captura da produção do saber pelas corporações. Os partidos
da ‘base aliada’ são quase ‘marcas de fantasia’, pois nas decisões mais
importantes o que pesa são as bancadas de interesses: das empreiteiras, dos
bancos, do agronegócio, do sectarismo conservador, da bola, da bala... Este retrocesso
ideológico possibilitou que muitas privatizações fossem empreendidas sem resistência,
que o fundamentalismo religioso tenha avançado e que a bancada ruralista tenha
obtido grandes vitórias, como a do ‘imbroglio’ do Código Florestal.
À hegemonia do neoPT, PMDB e seus satélites,
sempre ávidos por seus espaços no governo, com os costumeiros escândalos de
corrupção daí decorrentes – que não abalam a estabilidade da dominação burguesa
– corresponde uma espécie de ‘indigência intelectual’ crescente, com a
despolitização induzida. A mediocridade teórica está presente até na
caracterização de fenômenos sociais. A estrutura de classes no Brasil, por
exemplo, crescentemente complexa desde o fim da escravidão, está hoje reduzida
à tecnocrática definição alfabética do A, B, C, D e E. Carlos Guilherme Mota,
historiador, chama a atenção para esta nova denominação, de largo curso (OESP,
25/12/2011): “nesse sistema ideológico
dominante e desmobilizador, simplesmente fizeram desaparecer da cena nacional as
classes sociais tradicionais (burguesia, proletariado, etc). Ou seja, foram
desidratadas as classes fundamentais e seus projetos, eclipsados nesse sistema
obtuso de classificação social adotado por marqueteiros, “analistas” e
oportunistas da hora. Apagou-se da história do Brasil toda a complexidade e
dinamismo das classes e estamentos sociais, substituídos agora pela classe B, a
classe C, etc. Solidamente instalado o capitalismo selvagem, nessa manobra
ideológica apaga-se até mesmo a possibilidade de crítica à ganância
desassombrada de uma abstrata classe A. Nessa visão de mundo, a classe C
ascendeu para a classe B, mercê da bolha que explica o consumismo dos últimos
anos, que logo poderá explodir, aprofundando ainda mais a cultura da
inadimplência, da violência e dos banditismos em seus variados matizes”.
Uma outra característica do último decênio, no
campo político, foi a cristalização do conceito de ‘governabilidade’, com a
busca a qualquer preço (inclusive de ‘mensalão’) de apoio parlamentar,
desmobilizando-se qualquer força social de mudança e desnutrindo o debate
político e uma democratização estrutural na gestão. Aliando-se à direita, o PT
aderiu ao seu modo tradicional de fazer política, “peemedebizando-se”,
rebaixando-se ao padrão secular do clientelismo, do fisiologismo, com as
práticas ilícitas daí decorrentes, historicamente notórias (“O PT apenas fez o
que todos sempre fizeram”, defendeu-se Lula, em 2005). Foi o preço a ser pago
pela governança sem conflitos, presenteada com a contrapartida de nenhuma
ameaça real de ‘golpe’ alardeado por setores do PT: derrubar para que, se os
interesses do Capital e seus esquemas políticos não foram combatidos e sim
incorporados?
A novidade muito eficaz foi o modo lulista de
governar sendo oposição a si mesmo – sempre derrotada, claro. Explica Vladimir
Safatle em artigo publicado na revista Carta Capital: “trata-se da transposição dos conflitos entre setores da sociedade civil
para o interior do Estado. Assim, durante o governo Lula, o conflito entre
monetaristas e desenvolvimentistas encontrou guarida na briga entre o Banco
Central e o Ministério da Fazenda. A luta entre ruralistas e ecologistas
incrustou-se nos embates entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do
Meio Ambiente. Do mesmo modo, as querelas entre os militares e os defensores
dos direitos humanos expressaram-se na colisão entre o Ministério da Defesa e a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O que seria, em situações normais,
sintoma de esquizofrenia política foi, graças à posição de Lula como ‘mediador
universal’, uma oportunidade para o governo ‘ganhar em todos os tabuleiros’,
sendo, ao mesmo tempo, o governo e sua própria oposição”.
O filósofo e psicanalista Tales Ab´Sáber diz
que “o desenvolvimento do capitalismo
contemporâneo foi resolvido num projeto de pacto social. As classes
trabalhadores, particularmente os muito pobres, tiveram que aceitar aquilo que
o governo pactuou com as elites que era o possível de dar. E não mais. Quem
dava voz a certa tensão classista organizada e de massas no Brasil era o
próprio PT. E, no projeto do governo Lula, esse vetor do PT foi radicalmente
desmobilizado” (Caros Amigos, fevereiro de 2013).
Dilma, mais centralizadora e gerencial, e
menos permeável a mediações, já provoca inflexões nessa composição pendular da
administração. Mas o essencial, que é a implementação do capitalismo
monopolista no Brasil – com significativa presença indutora do Estado,
favorecendo a concentração de setores e sua cartelização (como frigoríficos,
bebidas, alimentos em geral, telefonia, aviação, bancos, etc.) – prossegue.
No plano social, há certa mistificação na
propalada melhoria das condições de vida da população pobre e ‘remediada’: 1)
80% dos novos empregos criados na década são de até um salário mínimo e meio;
2) 50% dos que têm ocupação continuam sem direitos trabalhistas e
previdenciários; 3) quase metade dos rendimentos de uma família da chamada
‘nova classe média’ é gasta com educação e saúde privadas; 4) em 2003, eram 1,5
milhão de brasileiro(a)s endividados; hoje são 8 milhões; 5) Rio de Janeiro,
São Paulo e Brasília estão entre as cidades mais caras do mundo, mantendo
legiões em situação de miserabilidade e mais vulneráveis a drogas devastadoras,
como o crack – sem que o Estado estruture qualquer política de
assistência e saúde mental.
O economista Alexandre de Freitas Barboza, do
Ceprab, pondera (Brasil de Fato, janeiro de 2013): “o problema tende a se agravar se o governo continuar achando que, ao
atacar a pobreza extrema, está automaticamente atacando a desigualdade.
Concentrar recursos naqueles que mais precisam, de forma isolada, no intuito de
melhorar suas condições é a linha de atuação mais confortável: evita atritos
com a ampla coalizão política que apoia o governo, propicia estatísticas
positivas e garante dividendos eleitorais.”
Em outras palavras, para garantir ganhos duradouros
dos mais pobres, de profundo reordenamento social, o governo teria que expandir
direitos universais à educação e saúde públicas, habitação e transportes de
massa, entre outros. E, por consequência, enfrentar interesses que até aqui não
teve coragem de enfrentar. Roberto Leher, em alentado artigo intitulado “Brasil: agravamento da crise, coesão do
bloco dominante e novos horizontes para as lutas sociais”, ressalta que “como argumenta Gramsci, a hegemonia de um
grupo, se envolve concessões fundamentais, vive um processo de transformismo. E
o PT fez concessões no que é fundamental: na macroeconomia, na questão agrária,
no repasse de recursos públicos para as frações rentistas e na forma de
inserção do país na economia –mundo”. Nas composições políticas com o
patrimonialismo, com o clientelismo e com a corrupção também, acrescentamos.
Não há novo modelo sendo gestado. Os Governos Lula/Dilma mantiveram intocados os
mecanismos estruturais de reprodução da desigualdade social brasileira. Relatório
da ONU, de 2012, revela que o Brasil se tornou o quarto maior destino de
investimentos no mundo. A outra face dessa vinda farta do capital estrangeiro
foi a desnacionalização das empresas: 1.296 desde 2004. Frações dominantes são
contempladas, desigualmente, pelas políticas econômicas. Os bancos (grande
capital financeiro), o agronegócio, as empreiteiras, o setor mineral
(commodities) e industrial – em especial as montadoras – formam o bloco de poder
hegemônico e recebem, além de isenções tributárias, polpudos aportes do BNDES.
Seguimos com terra
concentradíssima (70 mil grandes propriedades do agronegócio dominam ¼ do nosso
território), nossas exportações estão baseadas em ‘commodities’ minerais e
agrícolas e nossa matriz energética não caminha para mudança, com todos os
danos ambientais que a base tradicional causa. Grandes grupos econômicos e
financeiros controlam, com seus financiamentos, o processo eleitoral da nossa
democracia bienal, formal e banal. O estímulo ao carro individual engarrafa
cada vez mais o trânsito nas nossas grandes cidades, o saneamento básico não
existe para 40% do(a)s brasileiro(a)s, nossos corpos hídricos e mananciais
seguem maltratados, a prevenção para extremos climáticos é nenhuma e as
políticas de habitação, saúde e educação para os ‘de baixo’ são pontuais e
descontínuas.
A vida cotidiana nos grandes centros urbanos
tem trânsito cada vez mais caótico, já que não se investe em transporte
coletivo, e graves problemas sociais persistem: a população de rua do Rio, por
exemplo, cresceu 31% nos últimos 2 anos! A relação entre os entes da Federação
– municípios, estados e União – é a mesma de sempre, ‘pires na mão’, troca de
favores, liberação de emendas parlamentares individuais para cevar base
eleitoral, acordos partidários menores – inclusive no Congresso Nacional, que
leva desmatador a presidir a Comissão de Meio Ambiente do Senado e
fundamentalistas racistas e homofóbicos a dirigirem a Comissão de Direitos
Humanos da Câmara. “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”.
O Orçamento de 2013, só agora aprovado, é a
escritura contábil desse modelo: nada menos que R$ 900 bilhões (41,6%) são
destinados para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Valor
20% maior do que o pago em 2012, 4 vezes superior ao pagamento de todos os
servidores públicos (incluindo os aposentados), 10 vezes mais que o destinado à
Saúde, 12 vezes o gasto previsto em Educação e 162 vezes o reservado para a
Reforma Agrária.
É fato que o número de greves e de conflitos
agrários cresceu. Os dados disponíveis indicam que em 2010 elas foram 446
(1.186 conflitos pela terra) e no ano seguinte 554 (1.363 no campo).
Naturalmente todos esses movimentos urbanos têm pautas
econômico-corporativistas, e em 80% dos casos houve conquistas de reajustes
iguais ou um pouco acima da inflação, caracterizando uma ‘insatisfação sob
controle’.
5. Da necessidade do PSOL
Nos anos 30 dos século passado, existiu na
Itália um vigoroso e criativo movimento chamado “Giustizia e Libertá”. De viés
socialista, já combatia os desvios do stalinismo e, claro, era também
antifascista. Buscava aproximar justiça social, cuja plena realização só seria
possível em uma sociedade socialista, com liberdade. Nosso partido
tem como razão de ser atualizar, no século XXI, esses objetivos. Por isso somos
um partido necessário, o que, porém, não assegura que seguiremos crescendo e
nos consolidaremos como organização política transformadora, de quadros
qualificados, de massas: o PSOL ainda é um partido em construção. Construção
de quase uma década - concomitante com a mutação do PT, o êxito eleitoral do
lulopetismo e o crescente desencanto com a política. Construção ‘piracema’, nadando
contra a corrente, numa conjuntura muito difícil para a esquerda fiel aos seus
princípios.
No cenário nacional, somos o único
partido com representação no Congresso Nacional que questiona os fundamentos do
sistema. Todos os demais, mesmo que em retórica (cada vez mais escassa), no
nome da legenda ou no programa mencionem ‘socialismo’, estão adaptados como
partidos da ordem. O próprio já citado André Singer, em seu livro, reconhece
isto: “a conversão da segunda alma do PT
ao lulismo e seu correspondente ideológico, o desenvolvimento de um capitalismo
popular, deixou vazio o lugar do anticapitalismo, hoje disputado por pequenas
siglas como o PSOL e o PSTU” (p. 219). Pequeno como o PT foi um dia,
lembramos. Pequeno mas com vocação de grandeza, que temos o dever de
viabilizar.
Ainda incipientes, seguimos, local e
nacionalmente, com grave debilidade organizativa e somos ainda mais um partido
de correntes do que com correntes, com suas congênitas posturas hegemonistas e,
quase sempre, beligerantes internamente. É costumeira a acirrada disputa
por cargos nas direções para aparelhá-los a serviço de um grupo – ali
demarcando suas posições próprias ou, na impossibilidade disso, até deixando a
função inoperante. Núcleos e setoriais, tão importantes para a vida cotidiana
do partido, têm funcionamento precário. As exceções, como o Setorial de
Mulheres, razoavelmente ativo e unitário, são poucas. A formação política é
inexistente. Nossa comunicação com a população, mesmo nas novas mídias, ainda é
rudimentar. Reconheçamos que nosso dinamismo, no quadro de pouca mobilização
social, está hoje dependente do processo eleitoral.
A construção do PSOL pressupõe projeto
comum. Este, claro, comporta divergências políticas travadas em alto nível, e,
em especial, a partir da confiança mútua. O papel das tendências
não pode se apequenar: para servir de mecanismo de representação de parte da
militância nos espaços de direção, antes elas precisam representar ideias,
causas, visões próprias. É preciso nos colocarmos de acordo em relação a isto,
através de conversas francas entre os dirigentes de todas as correntes e as
figuras públicas do partido, superando o que Helio Pellegrino classificava como
‘narcisismo das pequenas diferenças’. Não avança um processo onde vejo o(a)
companheiro(a) como inimigo, e faço movimentos permanentes para excluí-lo. A autocrítica, esquecida e saudável tradição da esquerda,
também precisa ser exercida, pois há equívocos e procedimentos enviesados que
têm de ser assumidos e corrigidos. Mestre Florestan Fernandes alertava para um
fato “dramático e doloroso” que,
muitas vezes, se repete na esquerda: “grupos
políticos empenhados em se destruírem reciprocamente e, assim, manter o sistema
de poder das burguesias nacionais e do imperialismo”. Já passa da hora
de superarmos a paralisia, o ‘blocamento’, e fazermos um pacto político de
funcionamento e de objetivos. É urgente reafirmar – e praticar – que as
decisões das instâncias, tomadas democraticamente, precisam ser respeitadas.
Quem não cumpre as deliberações trabalha contra o partido e precisa responder
por isso.
No período eleitoral, por sinal, oportunistas
e carreiristas nos procuram para implementar seus projetos individualistas, e é
preciso estar atento para barrá-los, sem confundi-los com pessoas de boa
vontade política e pouco grau de formação. Os maiores riscos que hoje
corremos são, de um lado, o do fisiologismo, do pragmatismo eleitoral
corrompido e do adaptacionismo. De outro, o do isolamento, do sectarismo e do
vanguardismo, que é o principismo sem mediação com a realidade concreta.
Urge combater os desvios que podem nos jogar na vala comum dos partidos
invertebrados, insossos. Urge discernir entre a necessária firmeza estratégica
e nitidez ideológica e a estreiteza de posições, que não dialoga com a ‘massa
popular’ no sentido de, pedagogicamente, ajudá-la a se tornar povo. Um partido
como o PSOL que queremos consolidar não começa nem termina nele próprio: é, com
suas claras fronteiras ideológicas e éticas, instrumento da emancipação dos
oprimidos.
Há, entre nós, aqueles que ainda se movimentam
nos cenários do contexto social capitalista abordado por Marx e Engels no
Manifesto de 1848, ou da Revolução Russa de quase um século atrás. Em sua
concepção de partido segue em vigor o ‘partido operário vanguardista’, com
disciplina organizativa similar à da fábrica do industrialismo nascente. As
condições de luta mudaram, 70% da população do planeta já vive em cidades
médias e grandes, a classe trabalhadora se diversificou – até espacialmente –,
o Capital sofreu grandes mutações em suas formas de dominação, com a chamada ‘desmaterialização
da produção’. De lá para cá até as formas de comunicação humana sofreram
alterações significativas – aqui estamos nós disponibilizando teses e
explicitando nossas divergências na tela do computador, em rede...
A luta não se dá mais exclusivamente na
porta das fábricas, mas também – e muitas vezes principalmente – nas favelas,
nos terminais de transporte de massa, nos canteiros de obras, nas escolas, nas
praças públicas, na consolidação dos direitos das minorias LGBT, quilombolas e
indígenas, nas diferentes manifestações culturais e nos movimentos pela
igualdade de gênero, contra o patriarcalismo e o sexismo.
O partido, por mais revolucionário que pretenda ser, não monopoliza mais
a representação política, ainda que continue tendo a função insubstituível de
universalizar as lutas e oferecer-lhes um duto para interferir nas esferas do
Poder.
Isso tudo transformou significativamente
as condições da luta de classes e as formas de organização dos diferentes
setores (inclusive dos partidos políticos). E sofisticou as formas de
exploração e alienação na ‘sociedade líquida’, embora, evidentemente, persista
em muitas partes do mundo a exploração direta, braçal, violenta, do trabalho
humano – inclusive na República Popular da China.
Na sociedade cada vez mais urbanizada e
planetária, do globalitarismo consumista, que deixa ¼ da população “inempregável”, “excedente”, “sobrante” –
sobretudo no hemisfério Sul – a luta por democracia e cidadania participativa
ganha força. E traz, na malha urbana, um novo elemento na disputa da mais
valia, inscrita na atualíssima batalha pela socialização dos meios de governar,
no plano das Políticas Públicas e de seus orçamentos. Explica o economista José
Carlos Assis, em documento para debate apresentando no final de 2012: “a renda real do trabalhador não está
limitada ao que consegue na relação de produção, mas se realiza também na
relação com o Estado através da influência política da cidadania ampliada na
definição dos tributos e da destinação dos recursos públicos”.
É inegável que o Estado incorporou demandas
dos trabalhadores quando instituiu, no século passado, após décadas de domínio
‘imperial’ burguês e euforia crescimentista do setor privado, instituições como
legislação trabalhista, previdência pública e bancos centrais reguladores,
ouvindo a voz dos sindicatos. O Poder Público segue como palco da disputa de
interesses de classes. Com a crise das economias centrais, reitera-se seu papel
decisivo em: I) redistribuição de parte da renda nacional, em forma de serviços
públicos, para os setores mais espoliados; II) investimento em setores
estratégicos da infraestrutura; III) controle das atividades econômicas dos
setores privados monopolizados ou oligopolizados.
Parece-nos falso o dilema ‘partido de quadros X partido
de massas’. Discordamos dos que consideram que a forma para se construir um
partido à altura de nossos desafios históricos é recorrer a filiações em massa
para uma ampliação eleitoral. Filiações sem critério podem fazer do PSOL mais
um na geleia geral: a informação e a formação política básica são
imprescindíveis. A maior força do PSOL tem sido sua coerência de partido com
nitidez ideológica e fronteiras éticas.
Com quadros qualificados, mas aberto a filiados ainda em processo de
formação política.
6. Um Programa para o Brasil
Tarefa imediata para o PSOL, que deve ser
desenvolvida com os debates preparatórios para o IV Congresso, sem prejuízo de
nossa presença nas lutas sociais do momento, é a construção de um esboço
programático para a sociedade brasileira, na perspectiva da nova economia,
ecossocialista, libertária, da
radicalização da democracia e da busca da identidade nacional.
Estamos desafiados a elaborar um Programa
Básico que nos situe para além da ‘queda de braço’ entre a ‘esquerda e a direita
da ordem’, que falsamente ‘polarizam’ entre maior ou menor crescimento, maior
ou menor concentração de renda, maior ou menor dependência externa, maior ou
menor desmatamento, maior ou menor repressão às lutas sociais. Uma
dicotomia que deixa os movimentos sociais reféns da opção pelo ‘menos pior’, mas
não menos pior. Sem esse esboço que nos distingua,
sequer a afirmação de candidatura própria e conversas sobre alianças eleitorais
terão base político-programática para prosperar.
Pede-se de nós que, ao negarmos o que é
implementado ou afirmado pelo bloco no Poder, apresentemos também alternativas:
a cada ponto, um contraponto. Temos que ser, sempre, críticos e
propositivos, sob pena de não sermos ouvidos ou ficarmos reduzidos à caricatura
dos ‘contra tudo’. A batalha é também simbólica, ‘vernacular’: onde os
dominantes encontram recursos, na crise, para resgatar bancos, cobramos o
porquê de não se resgatar pessoas do desemprego e dos baixos salários; quando
eles falam em retomada do crescimento econômico, temos que reagir lembrando que
ele só é desenvolvimento se for sustentável social e ecologicamente equilibrado,
e se “contribuir para democratizar as
relações sociais em todos os domínios da vida coletiva - na empresa, na rua, na
escola, no campo, na família, no acesso ao direito” (Boaventura de Sousa
Santos, FSP, 23/1/2012)
Esse Programa Básico, a ser propagandeado o
quanto antes, inclusive como forma de nos inserirmos do ‘debate sucessório’
deflagrado em torno de ‘personalidades candidatáveis’ – 20 meses antes das
eleições nacionais! –, será plataforma para debate com todos os setores sociais
interessados. Mais imediatamente, ele deve ser ‘materializado’, no que couber,
em iniciativas legislativas (no Congresso Nacional, sobretudo) vinculadas à
propostas tributárias e fiscais distributivas, previdenciárias, educacionais,
administrativas e políticas. Para isso mesmo: instigar, abrir a polêmica, gerar
controvérsias, marcar nossa posição.
Assim iremos nos inserir, com fisionomia
própria, na disputa eleitoral já antecipada com o lançamento de candidaturas,
bem no estilo personalista e despolitizado em voga, onde o mais nítido é a
falta de nitidez. E no qual, até aqui, todos, incluindo Marina Silva e sua
indefinida ‘Rede’, se assemelham. A formulação da nossa Plataforma, já presente
pontualmente em diversas campanhas e lutas em curso, deve ser desenvolvida a
partir dos seguintes eixos:
a) Afirmação do público sobre o privado,
crítica à agenda de privatizações (PPPs, leilões das bacias petrolíferas,
concessões crescentes de espaços públicos a poderosos grupos empresariais etc),
ao papel de fomento de grandes grupos privados assumido pelo BNDES e estímulo
ao controle social das empresas estatais e públicas (buscando
formas democráticas de gestão das empresas públicas, em que os próprios
trabalhadores participem da gestão e definição dos cargos de comando, seguindo
o princípio da autogestão).
b) Contínua redução dos juros, controle do
fluxo de capitais, auditoria da dívida pública (41,6% do Orçamento 2013 destinam-se
ao pagamento de juros e amortizações, 20% maior que o pago em 2012),
questionamento do ‘dogma’ do superávit primário, revisão de privatizações
suspeitas, como a da Vale.
c) Programa de Reforma Agrária agroecológica,
com consequente política agrícola de crédito para insumos, recuperação de
solos, cuidado ambiental, assistência técnica, educação contextualizada, oferta de sementes e mecanismos de escoamento da produção.
Visando romper com a lógica do monocultivo e do uso intensivo de insumos.
d) Reforma Tributária progressiva, que taxe
efetivamente os ganhos de Capital, os rentistas, as grandes fortunas e
heranças.
e) Reorientação da matriz energética, com
investimentos em fontes limpas e renováveis, como a eólica e a solar.
f) Prioridade para as políticas estruturantes
de educação universal e pública,
saúde, habitação e transportes, que efetivamente promovem redistribuição de
renda de maneira duradoura.
g) Garantia dos direitos trabalhistas, sempre
ameaçados pela ‘flexibilização’, defesa das 40 horas semanais e do fim do fator
previdenciário, e ampliação dos direitos civis das minorias secularmente
discriminadas em função de sua orientação de gênero, sexual,
religioso ou etnia. Fomento a formas
solidárias de produção, circulação de mercadorias e consumo.
h) Democratização dos meios de comunicação nos
parâmetros propostos pela Conferência Nacional de Comunicação, para que
haja efetiva circulação de informações e opiniões, sem o monopólio de grupos
restritos, mais voltados para a liberdade de empresa que de imprensa.
i) Reforma Política, nos termos propostos pela
Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política, com o financiamento
exclusivamente público, austero e transparente das campanhas, e a efetiva
democratização dos meios de acesso ao Poder.
j) Combate sistemático à corrupção endêmica,
através do aprofundamento da transparência e do controle social na
administração pública.
l) Política de segurança que supere a lógica de
enfrentamento bélico, encarceramento e criminalização da pobreza. Revisão da
política de drogas, substituindo a lógica proibicionista com o fortalecimento
dos mecanismos de regulação, saúde mental e educação.
m) Financiamento da inovação tecnológica e do
conhecimento, que rompa com a subalternização do país às economias centrais.
Rio de Janeiro, abril de 2013
Equipe do Mandato Chico Alencar (deputado
federal/RJ);
Eliomar Coelho
(vereador do Rio);
Paulo Pinheiro
(vereador do Rio);
Jorge Guimarães (coordenador da Liderança do
PSOL na CD)
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