Segue a íntegra:
Realidade e Farisaísmo
Paulo Passarinho
A atual e
aparente queda de braço entre o governo e os bancos deve ser mais bem
entendida, antes de qualquer precipitada conclusão, conforme já alertei em
artigo anterior.
O último, ou
melhor, penúltimo capítulo dessa história foi a anunciada mudança nas regras de
remuneração das cadernetas de poupança. O governo apresentou a iniciativa como
uma necessidade para a garantia do processo de continuidade de redução da taxa
básica de juros, a taxa Selic.
Com a queda da
taxa Selic, os fundos de renda fixa – que são lastreados majoritariamente pelo
rendimento dos títulos públicos – tenderiam a perder competitividade em relação
à remuneração das cadernetas. Os títulos públicos, dentro desse raciocínio,
renderiam menos, por conta da redução da taxa Selic, e, por conseqüência, os
fundos passariam a pagar menos aos seus aplicadores. Os aplicadores em fundos
pagam, também, taxas de administração aos bancos que os gerenciam (em geral,
muito elevadas), além da tributação do imposto de renda, o que acabaria por
tornar o rendimento da poupança, isento de imposto de renda, mais atrativo do
que dos fundos. A cobrança do imposto de renda em relação aos títulos públicos
é isenta apenas aos fundos de investimento estrangeiros, o que já é uma
aberração.
A fuga de capitais dos fundos para as cadernetas, por sua vez, não
interessa ao governo, pois são através dos fundos que os bancos captam recursos
que são aplicados, em sua maior parte, em títulos públicos, fundamentais para a
rolagem da dívida pública.
Contudo, o mais curioso é que essa versão da história é apenas uma meia
verdade. A Campanha Auditoria Cidadã da Dívida Externa, em seu boletim diário
de acompanhamento das notícias veiculadas pela mídia dominante, em sua versão
do último dia quatro de maio, nos informa que “no dia 3/5/2012,
por exemplo, o governo emitiu R$ 1,5 bilhão em títulos, pagando aos rentistas
taxa de 10,7% ao ano, taxa esta que somente cai quando o governo reduz
drasticamente o prazo de pagamento de tais títulos, conforme se pode ver
na tabela da própria Secretaria
do Tesouro Nacional”. O citado boletim lembra, também, que “segundo o último dado da Secretaria do Tesouro Nacional,
dos R$ 29 bilhões de títulos da dívida interna
emitidos em março pelo Tesouro, apenas R$1,8 bilhão foram indexados à Taxa
Selic”. Além disso, “apenas 27,52% do estoque da Dívida Interna sob
responsabilidade do Tesouro estavam indexados à Selic, com o custo médio da
Dívida Interna sob responsabilidade do Tesouro Nacional sendo de 11,47%, bem
mais que a Taxa Selic” (vide www.auditoriacidada.org.br)
Em suma: a vinculação da remuneração dos títulos públicos à taxa Selic é
hoje uma realidade para menos de 30% dos títulos emitidos pelo Tesouro, e as
taxas que vêm sendo oferecidas aos credores da dívida interna mobiliária, nos
chamados títulos pré-fixados, excedem à atual taxa Selic, de 9% ao ano.
Em todo o caso, a mudança decretada para o cálculo dos rendimentos das
cadernetas somente será aplicada, caso a taxa Selic chegue a 8,5% ao ano ou menos
do que isso, nas novas cadernetas abertas ou para os novos depósitos
realizados, a partir do dia quatro de maio. Com a Selic fora dessa faixa ou
para as contas de cadernetas já existentes, a remuneração continua a ser de
0,5% ao mês, mais a variação da TR – Taxa de Referência, calculada pelo Banco
Central.
Com isso, o governo tenta capitalizar a medida, destacando o “respeito
aos contratos” e procurando assegurar que os poupadores da caderneta não sairão
perdendo.
E para não esquecer o fio da meada do último capítulo dessa história, os
analistas do mercado financeiro já voltam a manifestar preocupações com o ritmo
da inflação e os seus riscos à estabilidade econômica. A depender dessa turma,
as novas regras de remuneração da poupança não terão oportunidade de ser
aplicadas, pois, como sabemos, para ela, somente a elevação da taxa Selic é
eficaz para se combater eventuais elevações de preços em uma economia.
Nesse aspecto, o grande problema a ser considerado, levando-se em conta
que a maioria da clientela desse tipo de aplicação se constitui de pessoas de
menor renda, assalariados ou trabalhadores em condições de fazer alguma
poupança, é o modelo de economia – e de país – que continuamos a construir, sob
a hegemonia dos bancos e das transnacionais.
Com o crescimento do emprego e da renda dos segmentos mais pobres,
observado nos últimos anos, há um enorme espaço de propaganda positiva para
esse modelo, iniciado nos anos 1990, mas de aparente sucesso apenas no período
a partir de 2003. De lá para cá, as raízes do modelo periférico-liberal se
aprofundaram. Avançamos nas aberturas financeira, comercial, produtiva e
tecnológica, com acentuada perda de soberania em áreas vitais para o planejamento
do nosso futuro. A desnacionalização da economia e o grau de concentração dos
negócios são gritantes; a deterioração dos serviços públicos essenciais à
população é absurda. Privatizações, fraudulentas e perniciosas ao país, não
somente não foram revistas, como continuam a avançar. E a desmoralização e
descrença da população com o instrumento da política, como ferramenta para um
mundo melhor, é evidente.
Contudo, para muitos vivemos uma espécie de aurora de novos tempos.
A população, bombardeada por meios de comunicação de massa que procuram
difundir os supostos acertos da política econômica, parece não perceber que as
dificuldades do seu dia-a-dia são crescentes. De alguma forma, o acesso aos
crediários com altas taxas de juros e a possibilidade de comprar bens de
consumo a prestações criou uma espécie de amortecedor contra as evidentes
contradições vividas. Os centros comerciais – os shoppings – e suas instalações parecem substituir escolas de
qualidade, centros de saúde adequados, transportes decentes.
As lideranças políticas procuram também estimular a ilusão. Recentemente,
em solenidade no Rio de Janeiro, onde Lula foi agraciado com o título de doutor
honoris causa, por cinco diferentes
universidades públicas do estado, o ex-presidente, ao abordar um dos maiores
problemas urbanos que temos vivido – a falência dos transportes públicos e as
dificuldades de mobilidade nos grandes centros – afirmou que é o sonho de todo
trabalhador ter o seu carro próprio, poder passear com sua família e se
divertir. Disso ninguém pode discordar. Outra coisa é admitir como plausível, ou
inevitável, um modelo de cidade onde o trabalhador gaste quatro, cinco ou seis
horas do dia, para o seu deslocamento de casa para o trabalho e do trabalho
para a casa.
Ou seja: uma liderança como Lula, político projetado pela esquerda e com
origem popular, contundente crítico do modelo dos bancos até a sua chegada à
presidência da República, não se constrange em jogar para a platéia e apostar
em um nível atrasado de consciência, para poder se manter em evidência.
Nesta mesma solenidade, contudo, as fraturas do falso modelo exitoso de
governo, inaugurado a partir de 2003, se mostraram em diversos momentos. Logo
no seu início, com a atriz Camila Pitanga cobrando da presidente Dilma o veto
ao Código Florestal, recém aprovado pelo Congresso, pela própria base
governista. Ou na fala do reitor da UFF, ao reivindicar reajustes salariais
para os professores universitários e, também, a destinação de verbas
equivalentes a 10% do PIB para o Plano Nacional de Educação. Ou mesmo no
patético esforço de Lula para defender e elogiar Sergio Cabral Filho, o
corrupto e desmoralizado governador do Rio, além de seu aliado.
A realidade, portanto, teima em se mostrar, mesmo em ocasiões onde o
farisaísmo se manifesta e o baixo nível de consciência e responsabilidade com o
nosso futuro se mostram sem pudores.
10/05/2012
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