Contribuições para uma agenda econômica alternativa
Paulo Passarinho
A crise em que
mais uma vez o país mergulha não é um raio em céu azul. Não é, contudo, um
problema decorrente da má condução da política econômica – como defendem os
liberais de carteirinha e intensamente difundido pela mídia dominante. Nem,
como deseja o lulismo, um misto de crise externa com a suposta e hipotética
campanha de desestabilização da direita contra o governo Dilma, envolvendo
interesses imperialistas, ministério público e poder judiciário.
O que
atravessamos – mais uma vez – é o esgotamento de um ciclo de expansão do nosso
modelo econômico, dependente estruturalmente dos processos de expansão da
economia mundial. Como modelo econômico entenda-se o conjunto de medidas que,
adotadas desde o início dos anos 1990, conformaram um novo padrão de
funcionamento da economia brasileira, a partir especialmente da liberalização e
integração financeira do país com os mercados globais. Esse novo padrão exigiu
a remoção dos mecanismos de controle de capitais, até então exercidos pelo
Banco Central, e a adoção de novas regras que permitissem a livre movimentação
de capitais por multinacionais, bancos e demais agentes com interesses no
mercado externo.
O clímax desse
processo foi o lançamento do Plano Real, a ofensiva privatizante e o conjunto
de reformas constitucionais aprovadas em meados da década dos noventa. Uma nova
moldura jurídica, institucional e
macroeconômica foi construída por um forte pacto de classes que unificava
interesses de capitais externos com setores da burguesia nativa.
Por que recorro
a esse passado, para muitos longínquo?
Porque nos
encontramos, infelizmente, presos a essa moldura, até hoje. Sob o ponto de
vista macroeconômico continuamos a padecer de uma propalada – e espúria –
estabilidade monetária, dependente de taxas reais de juros elevadas e de uma
taxa de câmbio valorizada, excetuando-se, naturalmente, os momentos de
turbulência externa ou de instabilidade política.
A oportunidade
histórica que tivemos, em 2002, com a eleição de Lula, de mudar
substantivamente esse modelo, foi transformada – por uma opção de
governabilidade que negava o que o PT sempre defendeu – em uma nova
oportunidade de procurar fôlego para a proposta de país que já estava em curso.
E esse fôlego foi conseguido com a excepcional fase do mercado global, puxado
pela dinâmica da economia chinesa e seus parceiros asiáticos.
Internamente,
consolidamos as privatizações e uma ordem fiscal baseada na obtenção de
superávits primários elevados, como forma de administrar uma dívida pública que
tem como sua principal função a sustentação do binômio câmbio barato/taxa real
de juros salgada. A melhor prova disso foi a metamorfose dos novos governistas
e a sua conversão ao apoio à dita Lei de Responsabilidade Fiscal, um eufemismo
para legalizar a prevalência dos interesses financeiros na gestão do Estado.
Por tudo isso,
pouco importam as acusações dos liberais aos “neodesenvolvimentistas” e à
chamada “nova matriz macroeconômica”. Elas são funcionais para o teatro – ou
farsa? – da política dominante. Ajudam os liberais e suas críticas e são
extremamente convenientes para àqueles, os atuais governistas, que querem negar
que a vergonhosa adaptação às regras do jogo não deu certo.
O que
evidenciamos, nesse momento, é apenas a espetacular rendição do governo, mais
uma vez, aos senhores das finanças, sem a oportunidade, agora, de se negar a
realidade com as mitificações criadas nos últimos anos – fim da pobreza, nova
classe média, pagamento da dívida externa, política externa independente e
distribuição de renda a favor dos trabalhadores.
A realidade com
que nos deparamos é extremamente perversa com o povo. A chamada política de
ajuste em curso é apenas o arbítrio dos que querem se preservar – bancos,
multinacionais e rentistas em geral – em detrimento dos interesses da maioria.
Prova cabal disso é o fato do país campeão do mundo em regressividade tributária,
não ser capaz de avançar, um milímetro sequer, no rumo de uma tributação mais
incisiva em relação aos possuidores de altas rendas, aos detentores de
propriedade e aos capitalistas em geral, em meio ao falso diagnóstico que
simplifica a atual crise como se fora uma decorrência de um suposto descontrole
dos gastos públicos.
Dentro desse
quadro, é necessário estabelecer uma estratégia defensiva para os trabalhadores
e o povo em geral. Os principais instrumentos de luta construídos desde a crise
da ditadura até o coroamento vitorioso do projeto liberal no país – o PT e a
CUT, acabaram por se renderem à opção e lógica do lulismo e hoje se confundem
com o transformismo político que desmoraliza a esquerda que se rendeu ao
oportunismo e à falta de coerência em relação às suas históricas posições.
As consequências do ajuste de Dilma e Levy já
se mostram com clareza: aumento do desemprego; redução do rendimento médio dos
trabalhadores; recessão econômica; forte queda na arrecadação do governo,
combinada com a elevação das despesas com juros; cortes orçamentários que
atingem os gastos de custeio e de investimentos da União; e o próprio
estrangulamento financeiro de estados e municípios.
Ao mesmo tempo,
a inacreditável política do governo em relação à Petrobrás e à crise que atinge
os grupos econômicos que controlam as grandes empreiteiras investigadas pela
Operação Lava Jato, apenas agrava ainda mais o quadro de desgoverno que vivemos.
Por tudo isso,
torna-se urgente a formação de uma frente política que envolva movimentos
sociais, entidades de representação dos trabalhadores e partidos políticos de
vocação popular, em torno de uma pauta mínima de defesa dos trabalhadores e do
povo, incluindo:
1 – A defesa do
emprego e da renda dos trabalhadores
2 – A defesa da
segurança social dos trabalhadores e do povo
Esses são dois
objetivos básicos que deveriam orientar as prioridades do modelo econômico.
Entretanto, na prática, acabam se reduzindo, no máximo, a metas meramente
formais de um modelo que, para atender aos setores dominantes, difunde
postulados que apenas ocultam a ditadura de classe que defende a prevalência
dos interesses financeiros sobre toda e qualquer outro tipo de prioridade. A
estabilidade monetária, a disciplina fiscal ou a livre movimentação de capitais
aparecem, assim, como se fossem pré-condições para o funcionamento adequado da
economia, independentemente do real significado e consequências desses termos,
à luz do que temos observado, na prática, nos últimos 21 anos.
A estabilidade
monetária é espúria, pois - dependente do binômio câmbio valorizado/taxa real
de juros elevada - arruína a produção interna pelo lado da oferta – estimulando
a troca de produção doméstica por importados – e pelo lado dos custos, ao
manter elevadíssimos custos financeiros internos. Não sem razão, nessas últimas
duas décadas observamos o duplo fenômeno da desnacionalização do nosso parque
produtivo, em combinação com um acelerado quadro de regressão industrial,
traduzido em parques de montagem de peças e componentes majoritariamente
produzidos no exterior.
A propalada
disciplina fiscal – que seria garantida pelas metas de superávit primário, com
o objetivo de se conter em níveis adequados a relação endividamento/PIB - é uma
verdadeira falácia: desde 1999 submetemos o setor público a um esforço fiscal
sempre superior a 3% do PIB, ao menos até a eclosão da crise financeira de
2008, sem que o montante da dívida mobiliária fosse reduzido, nem tampouco a
relação dívida/PIB viesse a melhorar. Hoje, a dívida mobiliária da União
ultrapassa a três trilhões de reais e, na ótica do governo e dos liberais,
deveria exigir não a redução da conta de juros, mas maiores sacrifícios
orçamentários, com cortes ainda mais acentuados de despesas de custeio e de
investimento.
Por tudo isso,
um programa emergencial de defesa do emprego, da renda e da segurança social
dos trabalhadores e do povo exigiria uma radical mudança do atual modelo
econômico e a consequente alteração da política macroeconômica, em torno dos
seguintes pontos:
1 – adoção de
mecanismos de controle de capitais e de defesa do país em relação a
movimentações especulativas na esfera cambial;
2 – adoção de
regime cambial que permita a administração da taxa de câmbio de acordo com uma
política de defesa do emprego e da produção internas, visando a busca de maior
competitividade da produção doméstica;
3 – redução substantiva
da taxa real de juros, através da redução paulatina da taxa Selic e do custo médio
de administração da dívida mobiliária interna, de modo a diminuir o peso dos
encargos financeiros no âmbito do Orçamento Geral da União;
4 - realização
de uma ampla auditoria das dívidas interna e externa da União, com o objetivo
de favorecer a reestruturação das condições de pagamento das mesmas, em relação
aos seus prazos e custos financeiros
5 –
reestruturação do Orçamento Geral da União, com a redução significativa das
despesas com juros e encargos e o incremento de recursos nas áreas estratégicas
para a segurança social dos trabalhadores e do povo: educação, saúde,
previdência social, habitação popular, saneamento, transportes públicos e
meio-ambiente
6 – efetivação
de um reforma tributária que se paute no princípio geral da progressividade,
com especial atenção à revisão das atuais alíquotas do IRPF – ampliando-se a atual
faixa de isenção e adotando-se alíquotas crescentes de contribuição, de modo a
ampliar a atual estrutura de alíquotas, de acordo com as faixas mais elevadas
de rendimentos; aos mecanismos de isenção e facilitação tributárias do IRPJ; à
taxação de propriedades rurais, heranças e grandes fortunas; à redução dos
impostos indiretos e a sua seletividade, de acordo com a essencialidade do bem
ou serviço a ser tributado.
7 – promoção de
uma nova redistribuição de recursos entre a União, estados e municípios, de
acordo com as diferentes competências constitucionais dos entes federados.
Na perspectiva
ainda da defesa do emprego e da renda dos trabalhadores, torna-se urgente uma
total revisão da atual posição do governo em relação à crise por que passa a
Petrobrás e o conjunto de empresas envolvidas nas investigações da Operação
Lava Jato.
O anunciado
programa de desinvestimentos e a venda de ativos importantes e estratégicos da Petrobrás,
bem como a forma com que o governo vem tratando as empresas de engenharia e
serviços envolvidas nos esquemas de corrupção precisam ser totalmente revistos.
A possível e necessária punição aos dirigentes dessas empresas não pode
comprometer a importância de se encontrar formas – em nome do interesse
público, e não de privilégios corporativos – de preservação e continuidade das
obras e projetos em andamento, atingindo as mais diferentes regiões do país.
Levando-se em
conta, portanto, o interesse social e nacional, há de se estudar caminhos que
assegurem – dentro de um contexto que exige um novo padrão de governança de
todas as empresas envolvidas – a continuidade dos empreendimentos que estão
paralisados ou sob risco. O próprio BNDES, como credor de todas essas empresas,
poderia ser usado para o encontro de uma solução jurídica e administrativa, na
busca do reestabelecimento, em novas bases, dos contratos ora paralisados.
Por fim, a
resposta vigorosa de um novo modelo econômico do país, para a realidade do
emprego e do bem-estar dos trabalhadores, deve enfrentar o atual projeto de
modelo agrário e agrícola predominante. Nesse sentido, devemos dar especial
atenção para as propostas que vem sendo formuladas pelo MST, em torno da
necessidade de uma ampla reforma agrária e agrícola, como base para um projeto
que consagre a agro-ecologia como referência para a produção agrícola
brasileira.
Intensiva em mão
de obra, privilegiando o estabelecimento de unidades de beneficiamento da
produção junto às áreas produtoras, baseando-se em adubos e defensivos
agrícolas de natureza orgânica, essa proposta tem o mérito, também, de se
contrapor à ofensiva de agrotóxicos, transgênicos e utilização da terra de
forma extensiva, em torno de determinadas monoculturas, com efeitos deletérios
sobre os solos, águas e a saúde humana, que o atual modelo do agronegócio gera.
E, no campo dos
negócios, há de se abolir definitivamente o chamado financiamento empresarial
de partidos, políticos e campanhas eleitorais. Negócio altamente rentável e
totalmente pernicioso aos interesses do povo, este expediente é hoje o
principal mecanismo de sequestro do processo político pelos interesses das
corporações empresariais. Um atentado contra a democracia substantiva, contra
os legítimos interesses da cidadania.