Leila Ghanem é uma comunista libanesa. Antropóloga, com intensa atividade internacional, é editora da revista Alternatives / Bada'el' , distribuida
 em 10 países árabes. É autoridade mais do que legítima para um 
julgamento do que realmente está em jogo com a nova cruzada 
"ocidental-cristã" no Oriente Médio. O texto que se segue é a sua 
intervenção no excelente seminário organizado pelo Partido Comunista 
Brasileiro, por ocasião da celebração de seu nonagésimo aniversário de 
fundação. Trata-se de instrumento fundamental para uma avaliação 
objetiva do que está em jogo com as ameaças intervencionistas da OTAN e 
dos EUA, na região.
  
      
         As insurreições no Oriente Próximo e as tentativas imperialistas de desestabilizar a região       
         
     
      
   
  
    
    
      
    12 Abril 2012   
   
      Classificado em    
        
                     PCB                            -          
            
                     Memória                    
    
    
   
Leila Ghanem[1]
INTERVENÇÃO DE LEILA GHANEN NO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DOS 90 ANOS DO PCB (Partido Comunista Brasileiro)
Mais uma vez o Oriente Médio (o Mundo 
Árabe, em específico), mostra que é capaz de gerar movimentos de 
resistência (Líbano, Iraque, Palestina), de transformar as aventuras 
coloniais em derrotas militares categóricas e dar início a um ciclo de 
revoltas populares (e se trata de um ciclo que foi interrompido pelo 
Escudo do Golfo[2]) no Iêmen, Jordânia, Bahrein, Marrocos,  ocasionando 
uma intervenção militar imperialista na Líbia e as tentativas ainda em 
curso na Síria... Desde então estes eventos não são mais um assuntolocal
 e seu impacto diz respeito a todos nós...
Faço, aqui, uma distinção na minha 
análise entre os casos sírio e líbio, sujeitos a manobras colonialistas 
específicas do eixo EUA / França / Escudo do Golfo.
I - O impacto estratégico das revoltas no Oriente Próximo e as tentativas de desestabilizar os estados da região
É claro que estas insurreições se 
espalham em escala internacional através da crônica jornalística. Os 
efeitos das ressonâncias são propagados nas metrópoles capitalistas até 
Wall Street e não é por acaso que dois grandes países (EUA e França) 
conduzem suas batalhas eleitorais sob o signo dessas revoltas.
Na ocasião de sua campanha eleitoral, 
Obama anunciou seu plano para “estabilizar e modernizar as economias 
egípcia e tunisiana”. Também, por ordem de Washington, o Banco Mundial e
 o Fundo Monetário Internacional discutirão este projeto na cúpula G-8, 
em 26-27 de mai, na França. Obama, ainda, anuncia que os Estados Unidos 
estão criando “fundos empresariais para investimentos de empresas no 
Egito e Tunísia, como o modelo do que foi sustentado na transição da 
Europa Oriental”[3]. O Egito e a Tunísia ainda não superaram a sujeição 
às potências ocidentais, representada nos planos de reajustes 
estruturais que foram a origem externa das revoltas que estouraram 
nestes dois países e que queremos transformar em laboratórios deste 
“novo plano econômico neocolonial”[4].  O auxílio concedido a estes 
projetos não excedem 1 milhão de dólares e vai apertar ainda mais o 
garrote da dívida[5]. Mas, este projeto foi amplamente contestado no 
Egito[6], onde se viu várias iniciativas, inclusive uma autorização 
nacional feita por um sheik, para coletar localmente este dinheiro. O 
povo egípcio sabe agora que seu país foi pilhado de cima a baixo. Um dos
 instigadores da revolta estava de acordo a respeito do gás (o que 
decorre dos tratados de Camps David) em favor do qual o Egito se obrigou
 a vender seu gás a Israel três vezes mais barato do que o preço de 
mercado, ou seja, é ele que dá um presente a Israel de 3 bilhões de 
dólares por ano[7]. Logo, não apenas poderíamos passar sem a ajuda 
americana, mas ainda utilizar o 1,5 bilhão dado a Israel, para 
desenvolver uma distribuição energética em um país em que 20% da 
população vive sem nenhum acesso à energia. Outros acordos, tais como o 
Quiz, concedem a Israel uma quota de 11,4% sobre os investimentos ditos 
“pesados”.[8]
Sarkozy conduz sua batalha eleitoral na 
França sob o signo destas “revoluções”, empunhando a importância do 
papel que ele desempenhou na Líbia e da necessidade, no momento de 
crise, do patronato francês (MEDES e o arsenal militar e bancário...)  
definir um novo modelo para a saúde pública. Além disso, Paris se tornou
 a capital de uma oposição síria marginalizada no interior e corrompida 
pelo dinheiro do Qatar.
O paradoxo é que o “Escudo do Golfo”, à 
frente do qual se encontram Qatar e Arábia Saudita, age também para 
armar a oposição síria e libanesa, para financiar Annahda na Tunísia e a
 Irmandade Muçulmana no Egito, mas ao mesmo tempo financiar a campanha 
da direita na Europa, sobretudo a de Sarkozy, que utiliza a ira racista 
anti-imigração árabe como cavalo de batalha de sua campanha para se 
aliar à extrema direita. Isso nos leva a uma outra batalha de classe que
 transpassa as terras francesas. A imigração árabe na Europa desempenha 
um papel importante nas lutas sociais, assim como na luta anti-colonial 
na Palestina (campanha BDS, barcos para romper o cerco à Gaza).
II – O que quer esta coalizão de bandidos (EUA, Israel, Direita Europeia, Arábia Saudita, Qatar)?
Além das razões estratégicas evidentes 
de controlar as “torneiras” do petróleo e de separar a China da Eurásia 
(assim se mostra na batalha contra a Síria)... Ela tem por propósito, 
pura e simplesmente:
1. sufocar, por todos os meios, todas as
 formas de revolta, impedindo o processo revolucionário na Tunísia e no 
Egito, mantendo estes dois países dentro da submissão entreguista e a 
pauperização na “economia de bazar”. Os 20 milhões de egípcios que foram
 às ruas são um fato de uma importância histórica inegável, forçosamente
 tornando-se exemplo em escala regional e onde quer quea crise do 
capitalismo se projete mais duramente.
2. desestabilizar o Egito, que ocupa um 
lugar de liderança no Mundo Árabe, mantendo o status quo maldito criado 
pelos acordos de Camp David (os quais estão ligados aos acordos de Oslo,
 Camps David II, etc...)[9]
3. Atacar a Líbia e a Síria.
4. Isolar o Irã, minando sua base 
popular na região (para isso: 1- a revolta xiita do Bahrein foi afogada 
em sangue; 2 - a oposição iemenita foi sabotada, depois de ter afastado 
Ali Abdalah Saleh, mas ter mantido toda sua família e seu clã no poder; 3
 – os fascistas libaneses, aliados de Israel, foram armados contra a 
resistência libanesa do Hezbollah, uma vez que os EUA se recusaram a 
vender armas ao exército legal libanês, culpado de ter repelido uma 
agressão israelense a suas fronteiras. E enfim, incitar e armar uma 
resistência islamo-fascista na Síria.
5. Desarmar a resistência libanesa que 
mudou o jogo no Oriente Próximo, desafiando um dos mais formidáveis 
exércitos do mundo[10] e que constitui uma ameaça real contra o Estado 
colonialista de Israel. Esta resistência se tornou o alvo principal da 
aliança de bandidos americana-israelense, sobretudo porque ela deu um 
incrível exemplo histórico, revivendo os métodos vietcongues que já 
fizeram soar o dobre de finados para os ianques na Ásia e, sobretudo, 
para romper o muro de medo, apesar da correlação de forças 
desfavorável[11], decidindo lutar , ou "para escolher a morrer de pé", 
como dizemos no nosso jargão local.
Esta resistência é particularmente 
visada, não por seu caráter religioso, mas porque é de natureza 
anticolonial. Kissinger havia dito: "Nós não temos medo do Islã 
político, mas do Islãcombativo." Em oposição à "Irmandade Muçulmana", 
conservadora e pró-ocidental, o Hezbollah não reivindica o poder ou a 
aplicação da lei islâmica "Sharia", ele é parte de uma frente composta 
por partidos de esquerda, aí incluído o Partido Comunista Libanês, de 
partidos políticos anti-imperialistas e todas as confissões em conjunto 
(cristã, muçulmana, drusa)... Elecoloca como prioridade a luta contra 
Israel e contra o imperialismo, proclama reformas sociais e impede as 
tentativas de grilagem de terras no sul do Líbano, mesmo entre seus 
aliados.[12]
Não é qualquer coisa vencer o medo de 
todo o estratagema do 11 de setembro que visava aterrorizar não apenas 
os países da periferia, mas também as metrópoles... e era uma condição 
para passar ao estágio do capitalismo predatório, para o retorno ao 
colonialismo e a tomada direta de todos os recursos do planeta, 
incluindo a vida... Nós, do Oriente Próximo, fomos o primeiro 
laboratório deste terror, em todas as escalas militares, econômicas e 
políticas. Vimos desembarcar os americanos no Iraque com um arsenal de 
armas não-convencionais, e com eles as empresas como Monsanto, Syngenta,
 Dow Chemical e outras gigantes do agronegócio alimentar, ou da água, 
como a Bechtel[13].
III - Por que esta obstinação 
imperialista, apesar da derrota do sistema capitalista (crise, 
falências, enfraquecimento de sua força de ataque, movimentos de massas 
por todas as partes, inclusive em Wall Street)?
1. As revoltas que assistimos no Oriente
 Próximo dão a prova de que o capitalismo atingiu seus limites que 
chegou a um grau tal de centralização que fez desaparecer toda margem de
 autonomia fora do poder dos monopólios. E nós não podemos voltar atrás,
 não podemos desconcentrar o capital. O movimento natural do capital em 
direção a uma concentração cada vez maior nos conduziu até aqui onde 
estamos. E dentro dessas condições “as soluções que poderiam 
perfeitamente funcionar em uma etapa anterior de centralização do 
capital – uma vez que o Estado intervinha e que havia setores 
importantes da economia que podiam responder às incitações e políticas 
do Estado – não existe mais. É por isso que temos essas agências de 
rating, que são a voz direta do capital financeiro e já se tornaram o 
poder final para decidir a política econômica”.[14]
2. Se é verdadeiro que a insurgência 
árabe que surgiu na Tunísia e Egito têm incluído a pobreza, a corrupção e
 a falta de liberdade, é verdade que o ódio contra a dominação ocidental
 e à ocupação israelense estava presente devido à aliança entre estes 
dois regimes aos Estados Unidos. A natureza ditatorial desses regimes é 
um resultado direto de seu papel na manutenção dos interesses 
imperialistas.
3. Ambas as insurgências têm suas raízes
 em um processo de lutas que se acumularam desde o início da feroz 
liberalização da economia que remonta à década de 70, segundo imposição 
de Bretton Woods (Banco Mundial, FMI, Acordos de Camp David, GATT, OMC) e
 que tomou forma com os planos chamados estruturais. Para falar apenas 
da última década entre 2003 e 2010, mais de 3400 movimentos de protesto 
foram identificados no Egito. Este processo tem sido acompanhado por uma
 destruição sistemática das instituições do Estado, da concentração dos 
três poderes nas mãos de uma oligarquia submetida aos Estados Unidos e 
do estabelecimento de um regime repressivo.
4. O fato de que "estas revoluções não 
têm cabeça" ajudou a perturbar os analistas da esquerda europeia e do 
ocidente em geral, que não souberam qualificar estas revoluções 
populares, as quais não foram obra dos partidos de esquerda[15], mas um 
movimento espontâneo dos jovens e das massas populares, e não resultaram
 em uma chegada ao poder das forças revolucionárias. [16]
Pois o fato destas revoluções serem 
desprovidas de direção ideológica não retira nada do seu caráter 
revolucionário, no sentido de que nos lembra o filósofo comunista Alain 
Badiou: “Esta ação coletiva, desprovida da autoridade da lei, aquela que
 Marx denominou ‘o desvanecimento do Estado’, este triunfo, ilegal por 
natureza, da ação popular, chama-se revolução. Sublevar-se, construir o 
lugar público do comunismo de movimento, defendendo-o por todos os meios
 e inventar as etapas sucessivas da ação, este é o realsentido da 
política popular de emancipação. Comunismo quer dizer aqui: criação em 
comum do destino coletivo. Resolver sem ajuda do Estado problemas 
insolúveis, ou seja, o destino de um acontecimento. É isto que faz com 
que um povo, repentinamente, e por tempo indeterminado, exista, ali onde
 ele decidiu se reunir”.[17]
No momento atual, este movimento 
continua, centenas de sindicatos independentes nasceram, bem como 
comitês de bairro, comitês de acompanhamento para julgar os corrompidos,
 os traidores..., comissões para discutir a legislação e, sobretudo, uma
 assembleia para garantir a continuação da revolução a partir de Midan 
Tahir (esta semana foram definidos de maneirapermanente todos os comitês
 da Praça Tahir).
A continuidade deste movimento é a única
 garantia da continuidade do processo revolucionário e de parar as 
manobras imperialistas, e devemos, todos, ser solidários com os 
movimentos no Egito e na Tunísia, onde os sindicatos e os partidos 
políticos que fizeram Kasbah II decidiram continuar sua mobilização.
- Nós somos militantes comunistas; 
devemos garantir uma análise de classe e olhar ao mesmo tempo a tradição
 leninista e a dinâmica da história.[18]
IV - Os limites da agressão imperialista
Apesar da agressão imperialista, a correlação de forças não lhe é favorável.
- É verdade que, até o presente momento,
 as estratégias postas em prática pelas grandes potências não foram 
colocadas em xeque pelos movimentos, mas as posições do imperialismo 
dentro da região são muito frágeis. Com a queda das ditaduras abertas 
que estavam a seu serviço, eles perderam um aliado poderoso.
- Sobre o plano estratégico, os 
imperialistas saíram fragilizados de seu duplo fracasso no Iraque e no 
Afeganistão e são incapazes, ao menos num curto prazo, de atacar o 
Irã[19]. (O Estado-maior americano não apoiou esta ideia de uma guerra 
contra o Irã. As pressões israelenses não tiveram êxito  - resposta de 
Obama a Netanyahou).
- Além disso, o Irã é uma potência de 
porte (não é nem o Iraque e nem o Afeganistão). Ninguém sabe aonde 
poderia chegar uma aventura militar no Irã...
- Assistimos a uma concordância de concepções e uma aliança hermética entre o Escudo do Golfo e Israel
- Na Síria, a Rússia e a China colocaram
 todo seu peso para parar a arrogância estadunidense que quer ditar sua 
lei como fez na ocasião da guerra contra o Iraque, freando o processo de
 derrubada do regime [Bashar] Al-Assad e tentando achar uma solução 
local.
- Outras manobras de estabilização 
consistem em exacerbar a ira sunita-xiita e é aqui que os wahabitas 
sauditas e os emires do Qatar atuam plenamente, armando a oposição síria
 e corrompendo a oposição do Conselho Nacional Sìrio (CNS, que acaba de 
entrar em crise por questões financeiras)[20]. O objetivo é fechar o 
cerco ao Irã xiita, para quebrar a aliança entre o Hamas (sunita) e o 
Hezbollah (xiita), cuja aliança falhou devido à generalização de uma 
guerra confessional dentro do Islã. Esta tentativa foi para tentar 
frustrar o Hezbollah que conseguiu criar uma frente unida que envolve 
todas as três resistências anti-imperialistas na região: iraquiana, 
palestina e libanesas.
- Os modelos desta desestabilização, que se faz no escuro, nos colocam diante dos seguintes cenários:
I – o Paquistão servirá como modelo para o Egito ou a Tunísia;
II – a somalização da Líbia e da Síria 
(encontramos hoje na Somália cerca de 45 “governos”... a Líbia está a 
caminho desde “modelo”... a Síria poderia segui-lo...)
- No Egito, os serviços secretos 
americanos e israelenses não se desarmam, eles são onipresentes para 
controlar a situação e preservar o status quo e os acordos assinados. A 
Casa Branca havia aberto uma célula permanente cujo intuito era recompor
 a instituição militar[21]: Omar Souleiman, Tantawy e os outrora 
inimigos da Irmandade Muçulmana. Mas, aqui também, nem os militares, nem
 a Irmandade Muçulmana, podem agir abertamente em favor do bloco 
Israel-EUA. Por outro lado, os resultados das eleições não são um dado 
estático. O que podem os islâmicos dar às massas? Qual é seu programa? 
Por isso, o movimento nas ruas continua e as tropas dos partidos 
religiosos participam dos movimentos reivindicatórios. Como se disse 
antes, o medo havia mudado de lado e os povos ainda estão em alerta.
V - Que ensinamentos gerais podemos tirar das revoltas populares que ecoam pelos países do mundo árabe há mais de um ano?
1. A lição principal e fundamental é que
 os povos quebraram o muro do medo. Esta é uma grande transformação 
qualitativa. Durante décadas, os povos em questão, sejam os egípcios ou 
os tunisianos - mas poderíamos nos referir a muitos outros - concordaram
 em viver sob regimes policiais e mesmo de terror, pensando que era 
totalmente impossível fazer qualquer coisa. Agora, eles se revoltam.
2. A reversão do processo não é mais 
concebível. Não importam  quais sejam as manobras externas de 
desestabilização política e as forças que emergem à superfície, seja 
qual for a importância dos entraves diante das oportunidades para 
avançar, houve uma transformação qualitativa enorme, porque não podemos 
voltar atrás - pelo menos não facilmente – rumo a regimes de opressão 
como os que havia. Revoltas populares continuam e continuarão. Esta é a 
lição geral.
3.  Um eixo para o movimento 
revolucionário que chamamos “a memória das lutas” (ontem, o Hezbollah se
 inspirou nos vietcongues, hoje aqueles do Occupy Wall Street se 
inspiram em Qassabah [Tunis] e em Midan Tahrir [Cairo]).
Viva a luta dos povos. Que nosso combate
 continue para enfrentar o capitalismo que se encontra em crise e mais 
fraco do que nunca. Reforcemos a solidariedade internacional e criemos 
ligações entre as redes de resistência anti-colonialista 
(independentemente de suas ideologias)[22] e os movimentos 
anti-imperialistas, bem como de todas as formas de luta contra as 
instituições financeiras e a ditadura do mercado.
Viva o comunismo, a única alternativa à barbárie do capitalismo.